O ÚLTIMO ATO

O ÚLTIMO ATO - Maria Teoro Ângelo

Foi acontecendo aos poucos. Primeiro, ela começou a ver formigas, muitas formigas no chão, na cama, na roupa e subindo pelos braços. Apavorada, pedia que matassem os insetos. Depois foram comentários estranhos, perguntas sem sentido,atitudes inesperadas. Levantava-se durante a noite e ia para a cozinha fazer café, Achava que já era dia. Assim começou o drama.

Ficou agressiva, dava respostas ríspidas, falava o que pensava, procurava discussões, brigou com a família. O sono, a vida inteira difícil, ficou pior. Relutava em tomar as medicações, vagava pela noite como sonâmbula e precisava de vigilância constante. A dificuldade para andar, sempre apoiada em bengalas, impedia muitos atos, mas não a livrava de quedas e ferimentos.

Passou a não reconhecer as pessoas íntimas, virou criança. Enquanto tomava o sorvete, brincava com os pés batendo na cadeira como menina inquieta. Não reconhecia a própria casa onde sempre morou desde que nascera. Mesmo casada continuou com os pais e na ausência deles, ficou lá com o marido e só. Nunca teve filhos.

Todo esse quadro de demência era abrandado por momentos de lucidez. Animado pela breve melhora, o marido a via , em poucos segundos, voltar a ser o que nunca tinha sido. Vaidosa a vida toda, caprichosa na decoração da casa, na limpeza dos ambientes, mulher da sociedade, das altas rodas, personagem importante na cidade estava agora assim, no declínio da vida, sem identidade, perdida num passado, querendo a casa da infância, conversando com os mortos, trazendo de volta, na sua loucura, tudo o que havia perdido.

A vida começa com sonhos, o desejo de torná-los reais. Depois vêm as decepções quando as coisas não dão certo e toca a sonhar de novo e ser alegre ou triste conforme os resultados das nossas investidas. Agora, ela continua a sonhar e torna real o que bem quer. Formigas no chão, pessoas queridas voltando da morte.

O presente pouco conta. Perdeu a meiguice, a sutileza, o bom senso. Ficou birrenta, difícil de lidar. Não falta uma profissional competente que zela por ela dia e noite, não falta carinho da família. Está faltando ela.

O último ato do teatro que é a vida pode muitas vezes fazer com que nos superemos. Viramos outra pessoa e somos tão convincentes , que fazemos a platéia chorar. 24/04/2007

Lillyangel
Enviado por Lillyangel em 24/04/2007
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