Erna und Alfred

“Toque mais um pouco, meu filho”, dizia o pequeno grande homem, sentado a meu lado no banco de praça instalado no jardim. Um pouco surpreso com seu interesse, eu atendi seu pedido com prazer, esgotando rapidamente o escasso repertório de violão clássico aprendido até então.

Tocaria ainda algumas vezes para meu bisavô, porém nunca mais no belo recanto que ele criara em honra da esposa, gravemente doente e restrita ao leito. Ali seu espírito de espírito de artesão e inventor tivera um último lampejo, quando com mais de oitenta anos resolvera por abaixo o galinheiro e parte do pomar para presentear minha bisavó com um lugarzinho para tomar sol.

Logo o pedaço de terra, espremido entre a casa e a indústria que capitaneara por tantas décadas, mostraria o que só ele, quase cego, conseguira entrever: um espaço nada tímido de grama, flores e luz – arrematado pelo tal banco de praça para os dois namorarem, é claro.

Hannah, a enfermeira, descia com a Omama no colo, esperando nem sempre em vão por um momento de sua lucidez. Sentados ali, Alfred e Erna Kindler se entendiam através de longos silêncios, interrompidos apenas pelo canto dos passarinhos que os vinham saudar.

“Como está frio lá fora”, dizia o Opapa agora na cozinha, em “seu” lugar à janela, onde tocava o vidro displicentemente, disfarçando a debilidade da visão.

“Ele é tão respeitoso”, dizia Erna baixinho, referindo-se ao “senhor que dorme no meu quarto todas as noites”. “Ele só me faz um carinho na mão e fica lá, ao meu lado, não incomoda nadinha”.

Foram sempre água e vinho, aqueles dois. Bem, pelo menos é o que se conta a respeito. Alfred gostava de praia: construiu uma casa em Caiobá onde ela nunca botou os pés. Já Erna gostava do campo: adorava visitar a chácara da filha mais velha em Ponta Grossa. O boliche dele nas quintas-feiras à noite era sagrado, mas ela nunca foi lá muito fã de noitadas – preferia a família reunida, a casa cheia e os grossos cobertores de pena-de-ganso em uso. Mas eram ambos muito hábeis com as mãos. As compotas e conservas feitas pela Omama duraram mais que a doença ou ela própria, sendo abertas intactas anos depois e encontradas como se tivessem sido feitas ‘inda ontem. E das indústrias Kindler e Cia., desde os anos trinta funcionando na Rua Senador Xavier da Silva, pertinho da fábrica dos irmãos Mueller, saíram torneiras, chuveiros, bombas de encher bolas e pneus de bicicleta, bem como todo tipo imaginável de artefatos de metal, até instrumentos cirúrgicos quando estes eram caríssimos e raros de se encontrar.

As filhas e genros se revezariam em cuidados extremados para com ambos, quando a idade e a velhice assim o determinaram – por mais que Alfred jamais admitisse precisar de cuidado algum. Dirigira a velha Kombi bege por anos sem que ninguém soubesse que só lhe restara um quarto da visão de um olho. Mais tarde, já praticamente cego, empertigava-se todo quando alguém sugeria que este bisneto primogênito já lhe ultrapassava a altura. “Nein, nein, ainda não...”

Não se dobrou sequer à morte da esposa, certa madrugada em 1983. Avisado pela doce e firme Hannah – e contra o conselho desta – esperou o dia amanhecer ao lado dela, segurando sua mão pela derradeira vez. Suportou o féretro em pé, consolando mais do que era consolado, até desabar emocionado no carro do filho. Apesar da saúde de ferro, viria a falecer uns meros seis meses depois.

O interessante é que em minha cabecinha de criança, tudo isso era normal, apenas uma parte boa e feliz da vida familiar. Só a idade, e o tempo, despertariam a consciência de ter presenciado um milagre. Os Natais e as Páscoas na imensa casa de meus bisavós, o gosto da comida da Omama, os passeios pela fábrica que o tato do Opapa conhecia de cor, as longas conversas na sala de estar, o colo de ancestrais que tão poucos de nós logram conhecer...

De tudo isso, contudo, algo jamais escapou ao meu entendimento, por mais criança que o fosse: o exemplo de um amor que nunca precisou se preocupar em “dar” exemplo – estava sempre lá, simples e direto como um perfume que preenche invisível um cômodo, uma casa - nossas vidas. Verdadeiro milagre, neste mundo carente de um.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 01/05/2007
Código do texto: T471136