Meu legado dos outros

Coisa que gosto é guardar as pessoas em mim. É coisa que tenho necessidade, levar as pessoas comigo para até onde eu for.

É desse jeito: não fica nem nada do que não quero. Eu faço um truque: apreendo das pessoas o que delas sou eu.

Muito são as paixões delas que são minhas também: paixão pela música, paixão por alguma coisa besta ou boa.

Faço tudo virar eu, ou meu.

Assim, se causou dor em mim a pessoa, eu cravo em mim a dor.

Perder as pessoas me dói, mas aí: faço a dor virar um lamento meu, um lamentinho, ou tão.

Perder que eu digo é deixar ir, é não querer ficar, ou não deixar ir e querer ficar.

Lamento é palavra que gosto: é palavra sem culpa, é um choro fundo fundo, é força da natureza, presságio acontecido. Confortam issos, isso sim.

Outro dia me perguntaram como gosto tanto da música do Edu Lobo, isso é um exemplo.

Eu menti: que eram os LPs do papai, que nem lembrava, mas que ora! Acham que eu sou tudo o que eu sou!?

Mas nem, sou os outros: sou tudo o que nos outros sou eu.

Noutros exemplos, eu também menti, ou hei de: o do João Donato, o do Manoel de Barros, o do Hermeto, o do Guinga, o do Chico, o das árvores, o das ruas, o do mar, o do violão, etc, etc.

Foi que tomei decisão: todas as coisas serão minhas, antes de eu encontrar nas pessoas as minhas coisas.

Mas, arre, que dá trabalho descobrir na gente todas as coisas da gente!

Tem muito profundo, que nem tempo dá a vida inteira.

Amigo meu disse que vou ter de virar um monte de pessoas pra isso.

Mania de multiplicação.

Se já sou um monte... Preciso é me recompor.

É: preciso é me recompor.

Cristina Carneiro
Enviado por Cristina Carneiro em 06/05/2007
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