A negra Bela e o desempenho da economia

Tudo parecia exageradamente farto na negra Bela: as pernas, as coxas, as ancas, os seios, a boca, o sorriso de dentes completos e irrepreensivelmente alvos, a gargalhada estridente. Qualquer coisa era motivo para que Bela soltasse uma gostosa gargalhada. Até num velório.

É que ela se encarregava de todas as providências quando morria alguém em nosso bairro, Lagoa Seca, em Natal. Voluntariamente, sem nada cobrar pelos seus préstimos. E com uma dedicação comovente. O velório tinha tudo: café, chá, broa, bolacha, torradas, bolinhos de forma; e, discretamente, uma boa cachaça. Tão bem organizado que ninguém estranhava, nem repreendia, a gargalhada da negra Bela em meio ao sofrimento de familiares e amigos do morto (não tinha sido ela, justo ela, a primeira dos visitantes, a chorar incontrolavelmente abraçada à família enlutada?).

Mas aos nossos olhos de menino, mais do que a sua exuberância física impressionava aquele privilégio de fazer coisas "fora do esquadro" com a permissão dos adultos — como rir alto num velório, ato que nos diziam ser inadmissível.

A reminiscência ressurge como que por acaso, em meio a um breve diálogo com um empresário a propósito do presumível desempenho da economia em 2005. É que o otimismo do presidente Lula contagia a todos, inclusive parte importante do empresariado brasileiro. E basta que você faça algum reparo ou levante alguma dúvida para ser olhado com certa estranheza. Sobretudo nos círculos governistas, a que pertencemos. Quase como rir alto num velório. Ou demonstrar tristeza num ambiente de alegria.

No caso, a se confirmarem as previsões para este ano, só há motivos para alegria. Mas é preciso relativizar o otimismo. O país cresceu em 2004 e se prevê que continue crescendo nos próximos dois anos, mas numa dimensão e num ritmo distantes de satisfazerem as necessidades represadas do povo e de nos darem a robustez de que precisamos para competir na economia global. Um crescimento carente de bases sólidas, pressionado pela vulnerabilidade externa e, portanto, sujeito às intempéries do quadro econômico mundial instável. Basta ver a ansiedade e a insegurança decorrentes da oscilação do preço do petróleo.

Poderia ser diferente? Não são poucos os analistas isentos que respondem sim. E se queixam da persistência da política econômica interna conservadora que funciona, em última instância, como freio à implementação da nova política industrial e tecnológica e como desestímulo a uma maior ousadia por parte da iniciativa privada — esta sempre descrente da possibilidade de uma queda consistente e continuada da taxa de juros e da ampliação da oferta de crédito.

Questionar, portanto, faz parte. Pelo menos para os que participam do governo numa postura propositiva e ao mesmo tempo crítica. Tal como Bela a quem se permitia a gargalhada destoante, temos nosso direito a aprofundar o debate sobre os rumos da economia. Sem exageros nem pessimismos. Para o bem do país.

Luciano Siqueira
Enviado por Luciano Siqueira em 20/02/2005
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