Dona Fininha

Dona Filomena era uma das moradoras mais antigas do nosso bairro. Dizia ser mineira de nascença e baiana de permanência, na verdade nascera em Juiz de Fora, Minas Gerais, onde conheceu aquele que viria a ser seu marido. Este sim nascera na Bahia, na cidade de Vitória da Conquista. Caminhoneiro de profissão e aventureiro de vocação. Sempre atento a novas conquistas amorosas, o que acarretava constantes brigas entre eles, principalmente quando as viagens se alongavam. Eram justamente estes períodos alongados que geravam desconfiança. Mas dona Fininha não se dava por vencida, por várias vezes foi ao encontro do seu Armando, que por ser marido zeloso em preservar a paz familiar, tinha por hábito fornecer o local em que se hospedava, que por sorte, sempre conseguia escapar de qualquer flagrante.

Os cento e tantos quilos não impediam dona Filomena de ser versátil e bem humorada criatura. Seu humor só se alterava diante de qualquer insinuação de ser gorda. Aliás, devo aqui explicar o porquê de Fininha. Como toda Filomena fatalmente se torna Filó, com ela isso não ocorreu, os mais próximos chamavam-na de Filominha. Mas entre nós passou a ser a Fininha, não só para facilitar a pronúncia de seu nome, como para fazer certo contraste com sua figura. O certo é que de tanto tratá-la de Fininha entre nós, certo um dia, sem querer, viemos a chamá-la pelo apelido pessoalmente, o que não trouxe qualquer constrangimento, pelo contrário. Ela deu uma gostosa risada e aceitou de bom grado seu codinome. Pronto, estava definitivamente batizada e consagrada pelos demais vizinhos a nossa Fininha.

Dona Fininha morava em uma ampla casa, com um enorme quintal, que nos proporcionava a chance de improvisarmos nosso campinho onde, junto com seus netos, formávamos time de pelada, já que o local em que costumávamos jogar encontrava-se ocupado por um circo.

Todo quintal era tratado com muito zelo e carinho. Ao cruzarmos uma pequena porteira estávamos diante de uma espécie de grande galinheiro cercado de tela, e ali havia galinhas, patos, marrecos e até gansos, que repartiam e freqüentavam um mesmo lago, nadando e se refrescando numa convivência harmoniosa de causar inveja aos humanos. Bem ali perto, também partilhavam esporadicamente uma frondosa mangueira, um papagaio e um pequeno mico que pulava entre os galhos, como querendo chamar atenção. Mas quem verdadeiramente chamava atenção era o papagaio, batizado de Pirata.

Dona Fininha tinha uma especial admiração pelo Pirata. Quando não havia ninguém estranho em casa, Pirata tinha liberdade de freqüentar todos os cômodos da casa, sem qualquer restrição, mas ao sinal da chegada de alguma pessoa estranha, logo era levado para a sua morada na árvore, onde era atado por uma longa corrente, o que não lhe deixava nada satisfeito, murmurava e pronunciava um vasto repertório de pesados palavrões. Aliás, Dona Fininha, que era dada a comentários e explicações de tudo, afirmava que o nome de Pirata foi dado pelo antigo proprietário daquela simpática ave, um oficial da marinha aposentado, que viajara por quase o mundo inteiro, sempre em companhia do papagaio em seu camarote e em seus momentos de folga conversava animadamente com ele como se tratasse de um ser humano e até mesmo lhe ensinava algumas músicas tradicionais, entre elas, o Cisne Branco e outras. Mas ao menor descuido, lá vinham os marinheiro e demais tripulantes ensinar músicas obscenas e palavrões.

Sendo verdadeira ou não a biografia do Pirata, o certo é que sua proprietária já havia passado por alguns constrangimentos, quando se descuidava de retirá-lo do recinto, quando chegava inesperadamente alguma visita, como ocorreu com o Padre Valério em seu dia de visitação à comunidade. Chegou de surpresa, aproveitando a visita que fizera a uma paroquiana daquela rua. Encontrara o portão aberto, foi entrando em seus passinhos miúdos e sua negra batina, sendo interpelado por Falcão, um autêntico vira-lata que era muito cônscio de sua missão de guardião da casa. Foi um verdadeiro pandemônio, o cão latia e grunhia ferozmente. Dado o alarme, não deixou que o padre desse o menor passo.

Dona Fininha alarmada correu em socorro do pobre vigário. Com a aproximação de sua dona, Falcão mudou completamente de mal-humorado para um bem humorado e dócil animalzinho, sacudindo o rabo em alegria, corria até sua dona encarando-a na esperança de alguma palavra de afeto em retribuição de seu serviço, e voltava correndo para o padre, dando pequenos saltos para lamber suas mãos.

Passado o susto, o padre entrou e prontamente aceitou a poltrona oferecida por Dona Fininha, se acomodou e pediu um copo d’água. Mal a anfitriã se afastou para buscar a água, Pirata, que estivera o tempo todo observando ocultamente o padre, saltou de cima do lustre em que se empoleirava direto para o ombro do padre, este deu um salto de susto pelo inusitado visitante. - Valei-me São Francisco! - Apelou o pobre Padre. O papagaio não demonstrou o menor sentimento de arrependimento por ter incomodado o sacerdote, pôs-se a sacudir a cabeça e encarar a sua vítima do susto e já ia abrindo o bico para falar qualquer coisa, quando foi impedido pela sua dona. - Não abra esse bico. Disse em desespero a pobre mulher.

O Padre dando uma gostosa risada: - Não se preocupe minha filha, essas criaturinhas são amadas por Deus, portanto, são incapazes de nos fazer qualquer mal. Uma das grandes qualidades desses animais e a capacidade de falarem aquilo que os ensinamos. - Pôs o papagaio na ponta do dedo e começou a rezar pousadamente, sempre com o olhar no seu bico, este por sua vez fitou o olhar no padre e pensativo, como absorvendo aquelas palavras, começou a repeti-las, causando grande alegria ao vigário.

Dado por satisfeito pela visita, lá se foi o Padre caminhando em seus miúdos passos rumo à nova visitação.

Naquele dia, tínhamos marcado uma pelada. Quando lá chegamos, eu e o meu primo Beto, encontramos Dona Fininha reunida com outras amigas, certamente sem a presença de Pirata, e como se podia esperar o assunto era o mesmo que ocupava as reuniões do bairro, ou seja, a palavra de ordem era o perigo iminente que uma perigosa onça, que fugira do circo próximo dali, oferecia. Seu argumento era que sua criação de patos e galinhas poderia atrair o perigoso e faminto animal até o seu quintal. Portanto sua casa era a mais vulnerável ao terrível e cruel animal.

Como de hábito, suas falas eram seguidas de muitos gestos, os olhos esbugalhados em demonstração de completo horror com a fatídica possibilidade de ser visitada por aquela perigosa fera. Foi quando, assumindo uma aparência mais branda, disse que os fatos requeriam interferência acima dos homens, ou seja, era hora de apelar para o mundo espiritual, pois a ajuda maior só poderia vir do Alto, levantando os braços, juntando as mãos como em súplicas ao céu propôs: - É hora de provarmos nossa fé. - E, dando as mãos para a amiga mais próxima, aproximou-se da outra, fazendo o mesmo gesto, e com um acenar de cabeça sugeriu que fizéssemos o mesmo, assim foi formado um círculo em volta de Dona Fininha, éramos mais ou menos umas oito pessoas de mãos dadas.

Aguardávamos que nossa anfitriã desse início à oração, essa, por sua vez, sacudindo-se ritmada continuamente e soltando grunhidos, dirigiu-se até uma cômoda próxima da mesa da sala, abriu uma das gavetas, pegou um charuto, acendeu e deu fortes baforadas, sempre gemendo, sacudindo ritmadamente o corpo e dando grunhidos, aproximava-se de cada pessoa, que se mantinham em círculo e dava uma longa baforada sobre sua cabeça.

Fiquei sem saber o que fazer. Olhei para o Beto, este tremia e tinha os olhos esbugalhados pelo susto e o terror se ampliava à medida que chega sua vez de provar da temível baforada do fedido charuto, seu terror era tanto que suas mãos começaram a ficar trêmulas. Sacudi sua mão para que ele percebesse que não estava sozinho, mas este por sua vez tomou como um sinal para darmos o fora, com os lábios trêmulos e a voz também trêmula perguntou: - vamos embora? - não esperou resposta, saiu em desembalada carreira e eu, por minha vez fiz o mesmo.

Ganhamos a rua com segurança. Assim, descobrimos mais uma das especializações de Dona Fininha, ou seja: rezadeira fervorosa. E naquele dia não houve pelada.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 22/06/2014
Reeditado em 30/06/2015
Código do texto: T4854639
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