Dilemas de consultório

O sujeito chega ao consultório e a secretária logo pega o telefone:

- Aloan. Sim, é do consultório do doutor Horácio. Sim, ele tem vaga pra próxima semana. Qual o nome? Sim, o nome. Eu preciso do nome para marcar a consulta, meobem. Do paciente, correto. Sim, paciente é o doente, no caso.

Enquanto isso você fica lá parado, esperando, com um olhar compreensivo (afinal, atender as ligações faz parte do trabalho dela). Fica quase admirado com a calma da jovem. Paciente é ela, pensa. Segue a conversa:

- É com dois T’s? Ah, sim, com dois P’s. Tem H depois? Ah, certo. Pode soletrar e confirmar então, por favor? Arram. Arram. Certo. Oquei. Entendi. Marcado então, seu Stepphano.

Ela desliga o telefone ao mesmo tempo em que você abre um sorriso piedoso. Com um sinal, ela lhe convida a se aproximar, e pede o documento de identificação. Você o apresenta imediatamente, pulando (com sorte) o embaraço de abrir a carteira com pressa e despejar no chão meses de papeis acumulados, frutos da sua procrastinação. Ao menos eliminou o risco de ser visto como um obsessivo compulsivo porco.

A secretária compara sua foto no documento com sua face atual. Você se sente ridículo – afinal, aquela foto tem mais de dez anos. E hoje você tem mais que uma dezena de novos fios brancos. Ela começa a preencher o cadastro eletrônico, mas logo se distrai com um e-mail. “Desculpe, mas hoje em dia, sabe como é... Temos que ficar conectados o tempo todo”. Volta ao cadastro.

- Profissão? Urrum. CPF? Endereço? Ah, sim. Conheço essa rua. Uma tia minha mora na vizinhança. E sabe que outro dia... Ela abre a boca e ameaça dizer mais uma palavra, mas logo o telefone volta a tocar. Sem pensar duas vezes, ela atende.

- Aloan. Não, o doutor Horácio não pode atender. Não, infelizmente não. Não, querida. Veja só: ele está em consulta. Daqui a pouquinho você volta a ligar, tá? Promeeeto que passo a ligação pra ele.

E você continua lá, parado, desejando apenas se misturar entre os outros pacientes na sala de espera. Por ser o único de pé (e talvez pelo nariz, que insiste em escorrer) é alvo de todos os olhares. Se sente meio panaca e pensa em buscar uma cadeira, se escondendo atrás de uma planta de plástico no cantinho. Mas logo a secretária retoma:

- Desculpa, meobem. Sabe como é, né? Esse telefone enlouquece a gente. Temos que atender.

- Tudo bem, tudo bem – você responde, enquanto pensa o oposto.

No finalzinho do cadastro, a secretária se lembra de uma informação crucial que deveria ter sido preenchida antes. Ela cancela tudo e abre outra planilha. Começa a digitar o nome e repete a ladainha:

- Profissão? Ah, é mesmo. CPF? Zero três? Não era zero seis? Ah, então tá. Tem razão. Endereço? Hmmmmm, já te falei que uma tia mora na vizi...

Toca o telefone.

- Aloan. Não, o Dr. Horácio ainda está em consulta, querida. Sim, eu sei que pedi para você ligar “daqui a pouquinho”. Acho que dez minutos. Isso.

Enquanto isso você começa a desconfiar da eficácia da sua presença física. A mediação é a chave, pensa. Discretamente pega seu smartphone e começa a redigir um e-mail com todos os dados da sua ficha. Envia, e a secretária o recebe. Imediatamente ela informa:

- Só mais um minutinho, meobem. Chegou outro e-mail, acho que deve ser importante. Hmm. Engraçado. Alguém que mora na mesma rua que minha t...

Toca o telefone.

- Aloan.

Pronto, era o fim. Virou chacota. Você passa a se sentir tão importante quanto a planta de plástico no cantinho. Se não precisasse tanto, desistiria da jornada. Mas a garganta já o atormentava há uma semana. Por fim, resolve agir: pega o telefone e o deixa a postos. Assim que a linha fica livre, liga para a secretária. Ali mesmo, na frente dela.

- Aloan.

- Oi, aqui é o Carlos.

- Quem? Desculpa, meobem. Estão falando um pouco alto aqui no consultório.

- O Carlos. Estou na sua frente.

- Mas por que você ligaria para mim estando na minha frente?

- EU MORO NA RUA DA SUA TIA. EU! – você esbraveja, enquanto gesticula e toma o telefone da mão da secretária.

Finalmente seria atendido – isso se a impressão digital já estivesse cadastrada pelo plano de saúde. Mas já era uma vitória. O homem venceu as máquinas, ainda que temporariamente.