A falsificação da virtude: entre o relógio e a curiosidade.

As suas virtudes eram aparentemente as mesmas, foram capazes de ingressar numa universidade pública. O fardo, contudo, era distinto: um iria para as ciências humanas e o outro para as exatas aplicadas.

Ouviram, de uma forma ou de outra, que teriam que honrar a confiança da população, depositada nas universidades públicas e nos seus alunos. Entenderam. Entretanto, refinavam esse pressuposto nas suas responsabilidades pessoais e rapidamente dialogavam com eles mesmos, embora soubessem da responsabilidade social.

Esse primeiro calo coletivo adaptado não ficaria sozinho. No caso das exatas aplicadas não houve muito problema, afinal, esse refinamento era muito bem feito. O coletivo nunca estava em discussão e passava muito bem pela competição acirrada entre a elite estudantil da universidade. De certa maneira, dissimulava-se a honra destinada à sociedade através do ápice da competência; o caminho para isso era qualquer um, pois já bastava aceitar esse pressuposto da virtude-honra-confiança. Revê-lo já era demais, não era uma tarefa para eles.

A tarefa, portanto, do segundo nas ciências humanas era radicalmente diferente. Possuía a mesma virtude primária, sem que pudesse contar com o silêncio providencial dos que não tem tempo para reflexões, apenas para somas ou multiplicações. Estabelecer a subtração sempre foi jogar o excesso no lixo. É certo que essa máxima ecoou no ouvido do segundo como crise e não como uma obviedade. E da crise ou se renova ou se revolta e mantém-se, conserva-se. Seu tempo assim era longo, detinha longas manhãs para remoer a sua crise e namorar as estantes cheias de livros com letras e letras e apenas letras.

Não era capaz de contabilizar o que acontecia de fato. Sabia que deveria partir da virtude e honrar a confiança da sociedade, para isso, sentia a responsabilidade de dar fim aquele namoro trepido que acontecia todas as manhãs. Dos livros que pegava não conseguia ler quase nada, mas das estantes conseguia retirar o sabor da sabedoria, a proximidade com o curioso. Precisava de um culpado, um símbolo que restaurava sua virtude e abria caminho para o término desse namoro necessário mas danoso.

Comeu menos, parou de ver televisão, começou a fazer esporte, procurou uma biblioteca mais confortável, comprou tampões para os ouvidos, fez um estoque de isotônicos e decidiu observar a postura. Procurava o resultado, sabia que não seria instantâneo. Gostava da pressa, mas decidiu deixá-la, senão nada daquilo surtiria efeito. Foi duro, os isotônicos terminaram, a postura melhorou, virou atleta e descobriu uma biblioteca melhor.

Meses depois seu namoro matinal terminou, sua leitura aprimorou-se. Alinhou-se à virtude e vem descobrindo a cada leitura que seus problemas iniciais não eram incomuns e nem diziam respeito aos seus problemas pessoais. A admiração pelas estantes preconizava uma condição básica para aproximar-se de cada um dos livros: o abandono do relógio. Jogando fora o relógio, colocava-se sob outro patamar, afastava-se dentro do possível da imposição moderna. Sentia, agora, depois desse primeiro curso subjetivo e não-institucional que a curiosidade era seu tempo. Dentro do seu relógio ele esqueceu a virtude, a honra e a confiança. Estava diferente e nem por isso deveria ser jogado no lixo, muito embora essa idéia pairasse sobre muitas das pessoas que não tinham tempo para fazer nada.

Thiago Marx
Enviado por Thiago Marx em 17/09/2005
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