Arcádia
 

Sábio Drummond. O poeta de Itabira foi um professor compreensivo. Não fui seu aluno, mas ele me entenderia. Perdi o prêmio de colega amigo e também de mais inteligente da faculdade. Contudo, ganhei o troféu soneca. Aí me lembrei de Drummond e de seu poema “Professor”: “O professor disserta sobre um ponto difícil do programa./ Um aluno dorme,/ Cansado das canseiras desta vida./ O professor vai sacudi-lo?/ Vai repreendê-lo?/ Não./ O professor baixa a voz,/ Com medo de acordá-lo.”

A professora traçava belos versos no quadro. Era aula de Literatura. A turma atenta – entenda-se atenta uma turma que não tumultua a aula, mas que se dá ao prazer de conversas paralelas ou totalizantes. Alguns, apertados, pediam insistentemente para irem ao banheiro. É claro que ir ao banheiro para os alunos não é uma necessidade fisiológica, mas mental. Quando pedem para ir ao banheiro, normalmente, querem dizer: “professor, a aula tá um saco, me deixa ir lá fora para eu dar um grito (sufocado) e depois voltar”. Mas nem todos os alunos estavam atentos. No fundo da sala, um rapaz cabisbaixo. Sobre suas mãos, o peso da cabeça. Seus colegas próximos ouviam um roncar singelo. Na verdade, era apenas a respiração abafada.

A professora, ao contrário do que se imagina, consegue, sim, ver tudo na sala. Sua posição frontal lhe permite ver todos os alunos de vários ângulos. Notar um aluno cochilando é simples. Principalmente quando é um aluno já conhecido pelas suas participações durante as explicações. Uma aluna se aproxima dele com uma caneta bic. Pelos seus gestos, percebia-se o intento de tocar com a caneta a orelha do rapaz. A professora percebe a brincadeira e pede a aluna para sossegar o facho. Não despertar os justos de seu sono. O garoto merecia dormir.

Do lado de fora, o pátio da escola se transformava num atelier. Um atelier ao ar livre como almejou Van Gogh e Paul Gauguin. Mas não era um espaço para grandes artistas. Ali entre a educação de seus filhos, pais e mães aprendiam mais um ofício, ou melhor, uma arte. Sim, a arte não é um objeto de consumo, mas um meio de insumo. Fertilização da própria alma humana. A mãe do garoto dorminhoco estava com suas aquarelas e tela pintando uma cena campestre. No seu quadro, gramíneas, uma cerca e uma vaca sendo ordenhada. Era um presente para o filho. Seu trabalho estava concluído e quis fazer uma surpresa para o seu menino.

A professora continuava falando de poesia. Trabalhava uma estética estilística conhecida como Arcadismo. Falava de ovelhas e pastores. E os alunos ouviam bois e vaqueiros.  A mãe bate à porta que estava meio fechada. A professora abre. A mãe mostra-lhe o quadro e deseja presentear o filho ali na sala. Seria uma surpresa. Não era aniversário do filho. Os melhores presentes chegam sem data marcada. A mãe entra com um sorriso nos lábios. Mas o seu garoto estava dormindo. Quiçá sonhava com bezerros e vacas ou, quem sabe, com ovelhas e pastores. A mãe compulsivamente grita: “meu fi, óia o leite da vaca!”, apontando para o quadro nas mãos. O garoto inicia uma reação, mas sem despertar totalmente. Com voz sonolenta, responde à mãe: “pode dexá que eu já vô tirá o leite, mãe, só vô...” voltou a dormir. Os alunos se extasiaram. Gargalhadas e mais gargalhadas. A mãe com o quadro na mão, ficou sem reação. A professora pediu, gentilmente, que ela entregasse o presente depois, em casa. A mãe não se conformava em ver o seu filho dormindo daquele jeito. Mas pensou no seu quadro, representação do filho ordenhando uma vaca. Atentou-se para um detalhe: era dia na tela. Não, não era isso que acontecia, seu filho ordenhava na madrugada. Deixou o quadro num canto da sala e foi para o “atelier” da escola.

Tocou o sinal. Fim da aula. Todos os alunos saem, menos o garoto que continuava a dormir serenamente. A professora se aproxima dele. Ela vai sacudi-lo? Vai repreendê-lo? Não, a professora lhe sopra um beijo com medo de acordá-lo. Pega no canto da sala o quadro e o repara intensamente. A Arcádia estava ali, diante de seus olhos. Ao sair da sala vislumbrou a mãe, sozinha, pintando uma nova cena.

In: Ler-se(r), 2016, p. 47.