MAMÃE foi ESTÚPIDA na ARTE de AMAR

Intróito

A maior mentora desta simplória inspiração é sem sombra de dúvida, minha mãe de adoção: Altina Salvador Correia (in memorian). Pessoa de senso incomum e de muita acuidade sensorial. Mãe, que deveria ser mãe de todas as mães. Uma pessoa admirável para com o seu tempo. Sem ter ido à escola, falava de forma prática, objetiva e didaticamente simples, sobre caráter, moral, ética, virtude e vida justa para todos. Estas complexas teorias foi objeto de estudo de Aristóteles antes de Cristo e estão registradas no livro: Ética a Nicômaco, mas que estão perdidas nos dias de hoje em meio aos escombros e farrapos do respeito humano.

Dona Altina rabiscava as sílabas em folhas de bananeira. Sofredora com as agruras humanas. Visionária de dias melhores para a humanidade, usava a eloquência da comunicação, como meio de difundir sua visão poética e ideológica do universo. Deleitava-se em comunicar e fazia do ouvir, sua máxima expressão, no entanto, detestava ouvir as banalidades e futilidades do cotidiano.

De Psicóloga à Pedagoga.

Psicóloga e educadora: duas dádivas naturais dada pelo criador à ela. Inicialmente, agia como psicóloga, procurando entender o âmago das pessoas; “invadindo” as profundezas de seus anseios, desejos, emoções e sentimentos, analisando-os e indiscretamente, proferindo seu ponto de vista sob o assunto em pauta. Com sua sensibilidade aguçada e apurada empatia, colocava-se sempre no lugar do outro: “é impossível entender o mundo do meu vizinho, se não adentrar os limitados-limites do seu âmago”.

Tendo o conhecimento do problema em toda sua inteireza, quando permitido, sutilmente, segundo sua visão e experiência, mostrava as diretrizes de como conduzir o caso, visando satisfazer a todos. No trato com os filhos não era diferente: agia com o coração, quando era para se agir com o coração e usava a razão, quando o assunto demandava razão. Quem mais entendeu esses pormenores de Dona Altina, foi o filho adotivo, o qual a venerou como ninguém.

Nas suas raras aparições em reuniões “familiares ou sociais”, - escondia-se das lentes das máquinas fotográficas. Foto?! Só com muita diplomacia do fotógrafo, ou quando a encontrava devaneando em pensamentos por lugares distantes e proferindo frases alentadoras, proféticas e de cunho religioso:

- Um dia de vida é vida. A minha felicidade reside na felicidade das pessoas. Quem canta seus males espanta! Se sorrires, sorrirei com você; mas, se chorares, emprestarei as minhas lágrimas! O infortúnio e as catástrofes anunciadas, são preocupantes, incompreensíveis e aterrorizantes, diante desses absurdos incivilizados ainda é preciso dizer que a humanidade está afastada de Deus? Se quiser que as coisas saiam bem feitas, que faça você, não espere pelos outros. Faça o que eu mando e não queira fazer o que eu faço. Faça o que eu mando e guarde o que você pensa saber.

Mas, o aforismo que melhor retrata o seu anacronismo em relação aos dias de hoje e que representa a contradição humana é: “ O pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é nada”. Em suas palavras, o simples tornava-se complexo e o complexo: irrefutável absurdo.

Antoine de Saint-Exupéry, em o livro; “O pequeno príncipe” escreveu: “é com o coração que se vê corretamente, o essencial é invisível aos olhos”. Dona Altina não entendia de metáforas ou parábolas, usava a sutileza das entrelinhas para se fazer entendida, dessa forma, constantemente era imperceptível aos ouvintes e de difícil interpretação. Para entendê-la em sua plenitude precisava o interlocutor apurar os olhos para vê-la; a inteligência para compreendê-la e a alma para admirá-la.

As perguntas jamais respondidas

Provavelmente quem a conhecia mais profundamente e entendesse de sutilezas, pudesse perceber em sua fisionomia os momentos em que ela encontrava-se em divagação, procurando as respostas para as perguntas cruciais de sua vida: “há momentos quando o mundo inteiro esta adormecido que as perguntas ficam corroendo por dentro, profundas demais para uma mulher tão simples. Alguém não quer, por favor, dizer-me o que tenho a aprender e o que estou fazendo aqui neste espaço terreno? Sei que soa absurdo, mas, por favor, diga-me com clareza, pois gostaria de saber quem eu sou”. Às vezes, sentia-se aturdida com tais perguntas. Sem modéstia, Dona Altina incansavelmente, dormia e acordava buscando a perfeição.

A relação com o meio

Em seus oitenta e quatro anos de existência, muito fez para o seu meio social; fino trato para os com os idosos - as pessoas de sua idade -, amada pelos de meia idade e adorada pelos mais jovens. Recebia a todos em seu casebre com o sorriso singelo estampado em seu rosto, tudo de bom grado, bem ao estilo mineiro: café, queijo, quitanda, doce de leite; essa era “Dona Lora”, forma carinhosa de chamá-la. Aos mais novos, a palavra amiga, acolhedora, moralizadora, formadora de opiniões. Disciplinadora e educadora em essência. Acolhia as esperançosas crianças que se aglomeravam em frente ao portão todas as manhãs, esperando abri-lo. Assim que entravam, diziam:

- Bom dia vó; ou: “a sua benção vó”!

Num bate papo e outro, explicava aos “netos” como deveriam ser e agir para conseguirem liberdade, independência e autonomia, sem usurpar as conquistas alheias, que segundo ela, são as três melhores conquistas humanas. Dizendo sobre os atalhos e as dificuldades que provavelmente encontrariam nessa dura e longa jornada de vida, dirimia as dúvidas esclarecendo-os:

-Filhos, preste atenção, se quiser viver bem, com a consciência tranquila assuma seus erros, não cometa atos que necessite de interferência de polícia e justiça. A jurisprudência impera dentro de vocês e leva o nome de consciência.

- Exerça o poder com inteligência, discernimento e sabedoria. Não se envolva com política, pois a política é o encontro do poder, dinheiro fácil e o princípio da mentira; e mentira é aliciação do diabo.

- Não ande com companhias duvidosas. Não queira para os outros, o que não querem para vocês.

- Não contraia dívida, que não possa pagar. Respeite a todos: de crianças, como vocês, a idosos, como vovó e vovô.

- Sejam trabalhadoras, ajudem a mamãe nas tarefas de casa. Haja com dignidade e por fim, não deixem de estudar. O saber não ocupa lugar.

- Queridos netinhos, estas são as maiores honras que vocês podem proporcionar para os seus pais. Honrar o sobrenome de vocês é o mesmo que honrar o nome de vossos pais. O sobrenome é o elo-de-ligação, que em hipótese nenhuma pode ser rompido. É a aliança entre vocês e os pais.

- Tais palavras são difíceis de serem entendidas e postas em prática hoje, mas a vida é longa demais para um dia só, então, guarde e absorva-as porque em um momento qualquer, quando vocês menos esperar, precisarão delas para alentá-los de como agir para tomar a decisão menos errada em suas vidas; digo menos errada, porque com o andar da carruagem nos dias de hoje, devido às tormentas por que passa o mundo e o desequilíbrio humano, dificilmente há a forma exata e correta de ação e sim, como disse, há a saída menos errada. Tomem cuidado, muitos são as encruzilhadas e desvios, porém poucos, pouquíssimos são os caminhos da retidão.

Sob olhos perplexos, ao terminar a benevolente lição, mirava o horizonte que não passava de quatro paredes mal pintadas de cal e mergulhava em silêncio profundo e após alguns segundos de reflexão, concluía o veredicto filosófico: “para andar sobre o estreito fio da retidão, o caminheiro tem que manter o equilíbrio emocional constantemente, fixar o olhos no horizonte ao longe e deixar para trás os perniciosos caminhos percorridos e crer que encontrará pelo frente um sem número de novos atalhos e desvios. Atentem-se!”

Aí sim, para finalizar a sessão diária, distribuía uma guloseima para cada criança, que podia ser balas, doces, bombons, pão com manteiga, pão de queijo, suco, etc. Depois de beija-lá no rosto, aos poucos as crianças dispersavam e saiam uma à uma, em fila indiana, agradecidos pelos bons conselhos da “Vó Lora” e prometendo voltar mais tarde ou no dia seguinte; mas, antes de atingirem o portão da rua, em uníssono diziam:

- Obrigaaado vóóóó, amanhã nós volta. Fica com Deus!!

Esse era o ritual matutino da casa pequena e simples, de portas abertas, da anfitriã de coração acolhedor à vizinhança, localizada à rua Bom Jardim, 366. Assim começava o dia da vó do bairro. A mãe de adoção dos filhos de todas as mães. Além das reverências e dos agradecimentos, a maior recompensa à tudo isso, vinha lá pelas 3 ou 4 horas da tarde, quando a vó encostava no sofá para cochilar e alimentar suas emoções de esperanças de um mundo melhor para todos, principalmente para os seus pupilos; pois; realisticamente, sempre defendeu a tese de que o futuro, só aos novos pertence. Enquanto ressonava soprando anéis de esperança, sonhados pelo coração, ouvia-se os ruídos e gritos próximos ao portão:

- Vóóóó, a bola caiu no quintal; por favor, pegue para nós.

Entre os devaneios de sonhos longínquos de serem realizados, a sonolência da tarde e os questionamentos sobre a intolerância humana, lá vêm a vó, de passos curtos e tranquilos, plácida como a descida do céu sobre a imensidão das águas do mar e com voz serena dizia: “aqui está a bola filhos”! E voltava para os seus aposentos, o sofá velho e saliente, como corcova de dromedário fincado no cubículo do espaço chamado de sala.

Enquanto a meninada continuava jogando o futebol de rua, também conhecido na região como “peladinha”, esporte e lazer que eu sempre gostei, pratiquei e me envolvi, naturalmente contrariando a vontade dela, pois em seus conselhos ouvia-se: ‘vai estudar, deixa de ser vagabundo, o seu futuro está nos livros e não na bola”.

Para satisfazer a vontade dela, embora que não viesse de encontro ao meu querer, naquele momento abaixava à cabeça e seguia os seus mandados. Hoje tenho plena certeza que o meu futuro foi regido pelos seus apelos e conselhos e logicamente, pelos meus fiéis amigos: os livros. Salve dona Altina! Como vês, os livros não ficaram no passado, ainda fazem parte do meu dia a dia e continuarão sendo o meu esteio no futuro.

Os gritos de gol e a algazarra da criançada continuavam ecoando lá fora. Às vezes, repetindo o ato de minutos antes, batiam no portão para pedir a bola. O que - se comparado a Jó - a “vó do bairro” fazia com a maior presteza e paciência do mundo. Quando estava saturada de devolver do ir e vir, sem mostrar repugnância, em constante calmaria, pedia aos meninos para irem jogar em outro lugar.

- Filhos, por favor, a vó quer descansar, parem de jogar ou vão jogar em outro lugar!

O pedido soava como ordem militar:

- Desculpa vó, já estamos indo, estamos atrapalhando o sono da senhora, né?!

E pegando a bola debaixo do braço, liderados pelos mais velhos, lá vão a garotada se divertirem em outro lugar. Só mesmo ela, a psicóloga dos pequenos, a terapeuta dos oprimidos, podia conseguir a façanha de ser respeitada por uma criança. Em suas palavras, sempre se ouvia: “respeito, generosidade, carinho e gratidão, merecem respeito, generosidade, carinho e gratidão; isso é o mínimo que posso fazer por essas criaturas! Espero que amanhã, ou depois, consigam entender a rabugiçe da vó”!

Com suas lições na mente, com certeza, vários são os “netos” que estão vagando pelo mundo sabendo o que querem e o que fazem, pois foram bem explanadas, dosadas pela racionalidade e dirigidas para o que poderia acontecer no futuro; afinal, para ela, o presente nada mais era que o futuro em curso.

A divisão do pouco

Praticava fielmente a lei da semeadura, ou o que na Física chamamos de ação e reação: colherás o que semeares. O respeito entre ela e as crianças é o exemplo fidedigno do carisma semeado entre ambas as partes e para isso, dona Altina cumpria com o seu papel e fazia a sua parte, educando-os.

Nos últimos anos de vida, Maria de Lourdes, (Lurdinha) sua filha mais velha era quem administrava sua parca economia mensal, de um salário mínimo, que recebia devido aos seus prestimosos trabalhos desenvolvidos na área rural. Na data de recebimento, ao chegar em casa com o montante recebido para prestar contas, Dona Altina ordenava que parte do pagamento fosse para o pagamento das contas de primeiras necessidades, outra parte destinava-se às compras para abastecer à despensa, outra parte seria depositada para os gastos emergenciais e por fim, o restante seria para comprar guloseimas para a criançada que frequentava a casa dela. Solicitava à filha:

- Lurdinha, com esta quantia você compra o que for possível para os meus netos.

Lurdinha comprava o que fosse possível com o valor determinado por ela em balas, doces variados, biscoitos, chocolates, pães, pirulitos e outras guloseimas e conforme a ocasião, lembrancinhas. Se por acaso, as guloseimas acabassem antes da data prevista, que era nos dias próximos ao pagamento, dona Altina se valia de suas reservas econômicas e repunha os doces para as visitas ilustres da manhã, que eram os seus netos.

Senhora indizível na cidade de Matozinhos, Minas Gerais, onde viveu por mais de 25 anos, destes, mais de 20 anos no bairro do Bom Jardim. Local que ao cair da tarde e na boca da noite, momento em que ia curtir uma “fresca’, como costumava dizer, subia os aproximados 200 metros de rua, serpenteando vagarosamente para superar o pequeno aclive do logradouro, parando aqui e ali, em frente ao portão das casas dos vizinhos para um breve boa noite. Ouvia e contava casos, às vezes repetidos, das atividades diárias e a cruz carregada pelos missionários a caminho do calvário. Dona Mariinha, dizia que já não suportava mais tocar a vida sozinha. Para dona Raimunda, a preocupação era como fazer a feira para a sobrevivência dos filhos e netos, na segunda. O Sr. José dizia que se sentia tremendamente debilitado, pedia a Deus que lhe desse forças para continuar em pé.

Quando atingia à confluência das ruas, após ouvir atentamente as conquistas e as queixas dos amigos, dava meia volta e contava os passos de volta para o seu reduto. Chegando ao portão, antes de entrar, ofegante devido à caminhada, somado aos sintomas da enfisema pulmonar que lhe acompanhava desde jovem, sentava-se à beira da guia para aliviar-se do cansaço e se tivesse alguém disponível, fazia a última resenha do dia, quando não, desejava um simples boa noite ao transeunte. Resumia a viagem diária realizada à essência humana, dizendo:

- Cada um no seu canto, sofre o seu tanto!

Para ela, o dia deveria se prolongar pôr mais de 24 horas. Antes de adormecer cumpria religiosamente com as derradeiras tarefas do dia. O relógio biológico a estimulava a tais tarefas:

- Deus escreve certo por linhas tortas, pois existe o momento certo para tudo; até para nascer e morrer! Primeiramente os deveres, depois, se sobrar tempo, os direitos!

Voltava para o sofá e ligava o televisor em cores preto e branco e colocava-se em posição de sentido para ver as novelas, de preferência Mexicana, em que os atores são crianças, encenando as fantasias de crianças. De repente ao mudar de canal, deparava-se com a modernidade, sem delongas disparava:

- Os tempos estão mudados. As pessoas não tem vergonha na cara em mostrar o corpo nu. Se fosse para ser exposto nu, Deus não teria criado as vestes e a vergonha! A humanidade consegue sem muito esforço tudo o que quer, no entanto, em mesma escala, perde a essência que lhe foi ofertada, que é o conceito moral.

Acompanhada por uma neta, fechando os olhos tomados pelo sono, agradecia aos céus por mais um dia de vida e adormecia no seu mundo de peculiaridades. Realmente, naquelas bandas, além de mudados, os tempos não passavam; conforme o merecimento, naturalmente, flutuavam. E dona Altina é o exemplo máximo desse merecimento.

Citação à simplicidade Altinense

Estradas cortam o morro. Visto de longe, o vermelho-ferrugem da terra batida, contrasta com o filete verde das matas ciliares, salpicadas pelos ipês floridos e cristas verdes de morros descampados. Estradas estreitas de largura, porém longas de comprimento. Cavaleiros ou caminheiros, nenhum, jamais chegara aos seus destinos e nem se atrevera a desvendar as suas origens. Diminuto, um ou outro, passando por encruzilhadas e cruzinhas que assinalam mortes, andam por elas. Em suas variantes, sempre há um ar de mistério.

Depois de muito andar, distantes umas das outras, avista-se uma redundante casinha pequenina. Algumas habitadas, outras, não. Mas, algumas delas contam os segredos e estórias da vida daquele mundo inóspito. Relatam a vida de um certo povo. Nada de velho, tudo de novo!

Saindo da estrada, delimitada somente pelas espessas toças de floridos manacás, a trilha adentra a propriedade sem divisas e cercas. A primeira parada é para curvar-se ao rangido da porteira de madeira, o portal de entrada, e observar os baixios e grotões. Distante, as águas das cachoeiras deslizam suaves sobre as ondulações dos rochedos. Vindo em ondas desiguais, os cumes aproximam-se do observador. Entre os cumes, os montículos verdes e agudos completam o cenário.

Dalí segue direto para a reticente habitação. A fumaça espiralada que sai da chaminé é a comunicação da lenha que crepita no fogo, dizendo aos visitantes que podem completar a caminhada: “os anfitriões estão em casa e apostos. Podem acabar de chegar, vocês devem estar cansados e exauridos. O banco de madeira ao redor da mesa será o refresco para as pernas. Os senhores e as senhoras, todos, serão recebidos com imenso prazer e convidados às convivas!

Hoje, surpreendemente, a casa esta cheia. Afinal de contas, um dia de vida e um dia de vida plena, pode ser um dia de vida e nunca mais! Nesse dia, vivamos uma vida, que pode muito bem traduzir-se num dia pleno”.

Acima da porta, a inscrição na tabuleta desejava boas vindas aos visitantes: “sejam bem vindos ao minúsculo monte de terra, que faz parte de um torrão enorme que cobre este mundo velho sem fronteiras. Que tenham um dia de vida longa sob nossa companhia”.

Com suas portas e janelas escancaradas, a casinha no topo, espera pelas visitas que pouco aparecem; quando dão as caras, são recebidas com os valiosos bons modos de conduta: “tenha um bom dia; uma boa tarde; uma boa noite; que surpresa, você aqui hoje!! Que notícias trazes de lá!? Já vai compadre; espere pelo café, a água está chiando no fogo; que bom que você veio; é cedo senhor Joaquim; leve lembranças nossas para a comadre Sinhá; volte sempre; vê se aparece mais vezes; foi bom vê-lo com a pele rosada”!!

Benevolentes amizades são como o cardápio trivial da casa. O prato comum, do dia a dia, que contém: feijão, arroz, hortaliças e legumes colhidos na horta; macarrão, angu, farofa, bife e frango caipira. Amizades sinceras e ventos despretensiosos não escolhem hora para chegar e nem mandam recado: mais cedo ou mais tarde, marcam presença no endereço indefinido. Sentam, proseiam os casos perdidos no tempo e lambiscam, lado a lado na mesa posta.

Caiada com as cores da barroca, a casa aconchegante e hospitaleira é aquela em que as portas e janelas estão, ininterruptamente, abertas aos visitantes. É aquela em que os visitantes entram pela porta da sala e os visitados saem pela porta da cozinha: “a casa é de vocês; sintam-se em casa”! Essa é a casa boa. Essa é a casa onde a simplicidade faz morada e livram-nas do preconceito e das manias dos olhos atravessados.

Toda felicidade libertária tem de ir aonde as portas, as janelas e a simplicidade se encontram. A ida nesse lugar é fundamental para rever o retrato enfumaçado de uma época e de um povo. Tudo velho e nada de novo!

Duas vidas: um único caminho

Se por um lado os segundos vividos por Dona Altina eram marcados pelas dificuldades e privações diárias, por outro, existiam algumas coisas simples que a fazia sorrir. Não o sorriso comum, aquele que se estampa nos rostos em qualquer esquina, mas sim, o sorriso verdadeiro; o sorriso vindo do coração, que é o sorriso da alma. O sorriso que, por mais sincero que possa parecer, os lábios e o rosto são incapazes de retratar o que realmente a pessoa esta sentido, principalmente ela que dificilmente esboçava um sorriso, ainda mais abominando o banal, pois voltava as suas palavras para a construção moral e ética do ser humano.

Por mais que o dia tenha sido monótono e custoso, Dona Altina merecia ter uma alegria, uma ínfima alegria recompensadora, para fazê-la esquecer das agruras do cotidiano e mantê-la firme nos próximos segundos. E para alimentar a sua singeleza, isso realmente acontecia.

As almas gêmeas

Duas almas gêmeas que sempre eram punidas pelas suas sinas de vida. E certamente, a única tentativa cabível de definição para a punição daquelas duas almas era: “as outras coisas podem ser ilusões dos olhos ou do desejo, feitas para cegar uns e saciar o apetite dos outros; mas foi na dor que foram construídos os mundos”. Oscar Wilde

Nos últimos anos, impossibilitada de fazer a caminhada vespertina, pois a força física e as articulações esvaiam-se proporcionalmente ao passar dos anos, alguém toda tarde, invariavelmente, ia visitá-la. Na realidade, não era uma visita, como são as visitas que se recebe de tempo em tempo, mesmo porque, essa pessoa fazia morada em suas intimidades, tamanha era a afinidade e entendimento entre as duas.

- Cheguei dona Lola.

Diante do horário, do rangido do portão, caso estivesse fechado, da batida compassada dos pés no chão batido e do realce da voz mansa que adentrava à casa, é redundante dizer que quem havia chegado era dona Cristina. Onde estivesse, dona Altina disparava os passos em direção à mureta do alpendre. Ao vê-la, dona “Lola” transmutava a fisionomia. A relação entre as duas era tão natural e amistosa que nem abraçavam-se, também não estendiam a mão uma para outra, apenas olhavam, com olhares sinceros e complacentes, no entanto, em suspiros tácitos, o íntimo de ambas exclamavam: “aqui estamos novamente reunidas. Sinto-me imensamente feliz pela senhora existir em mais essa dia. Qualquer formalismo de apresentação, jamais mensurará a nossa honesta amizade e esse momento em nossas vidas. Isso é tudo. Qualquer outro formalismo, que não seja esse, é nada!!”

E de prosa em prosa, qualquer segundo era infindo; dias; meses; anos. Valia por horas. Estando juntas, tagarelando as novidades e vicissitudes do cotidiano pareciam ultrapassar os limites definido pelos relógios. As duas cravavam a fala geometricamente na mesma linguagem e na mesma frequência, isso porque, naquele momento, lugares distantes tornavam-se perto. Dificuldades eram facilmente superadas. Os questionamentos das verdades humanas chafurdavam em poesia e contos. Tudo bem a moda de duas matutas desprovidas de ciência. O sombrio das trevas permitia a passagem da fresta de luz, com a finalidade de conduzir os passos da humanidade a dias menos sórdidos.

De súbito, as vozes silenciavam. As muretas do alpendre emudeciam. Dona Altina, faltando com os bons modos de conduta, deixava a ilustre visita e sumia em direção as dependências da casa. A cena era tão comum, que dona Cristina nem fazia caso do sumiço momentâneo da amiga. Um...dois...três...cinco...minutos se passavam, ás vezes até mais; quando dali à pouco, arrastando o chinelo desgastado pelos anos, voltava a anfitriã com uma xícara e uma colher na mão.

- Coma dona Cristina. Escondi dos meus netos essa xicrinha de doce para a senhora. Se deixar, eles comem tudo.

- Mas...dona Lola, não precisava!

Porém dona Cristina também entendia de gentileza e repetia o feito. Entre as duas, a retribuição do toma lá, da cá, era inerente e sem cobranças. Praticamente todos os dias a alma gêmea chegava com alguma coisa na mão, para ofertar à dona Altina. O revezamento, do dar e receber, chancelava o carimbo do compromisso da sinceridade, honestidade e do bem estar entre as duas. Novamente a igualdade de pensamentos, ideias, palavras e atos faziam-se presentes. Ao lançar a mão para ofertá-la, dizia: “dona Lola fiz um pouquinho e trouxe para a senhora provar”

- Mas...dona Cristina, não precisava!

E de frases e palavras repetidas, para elas, era óbvio que precisava, pois boas e honestas amizades necessitam do doce do mel para adoçar a amargura do fel que já vem arraigado ao íntimo humano. Dona Altina e dona Cristina, eram duas almas gêmeas que vieram de estradas opostas: uma das bandas do vilarejo de Santa Bárbara e a outra, das bandas da Serra do Cipó, para se encontrarem naquele lugar; embora que se conheciam muito antes, pois intimamente falavam a língua inaudível dos anjos e entendiam a complexidade do homem.

Talvez esse seja o pensamento uniforme das duas almas gêmeas que andavam de mãos dadas: “o caminho não pode ser reto, para aquele que, cujos atos são remendados constantemente, como colcha de retalhos e discordam do professado.”

O voo derradeiro da iluminada águia soberana

No dia 2 de dezembro de 2000, passado a virada do milênio, o rangido do portão da casa da rua bom Jardim, 366, silenciou-se. Passados dois dias, ou por ironia do destino, ao romper do dia 4 de dezembro, às 6h e 40mim, a iluminada águia soberana bateu asas para nunca mais sair da gaiola, materializada. Bateu asas, deixando para trás a casa, com o portão, portas e janelas escancaradas para quem quisesse entrar, como sempre fora.

O bairro Bom Jardim adormecera! Adormecera de vez! Adormecera de vez para nunca mais acordar! Adormecera acreditando que a vida não adormece...acreditando que, como a aurora do dia de hoje, a vida recomeça sempre! Dona Altina partiu do bairro Bom Jardim, para o jardim do éden, que além de ser bom é eterno. Fora construído especialmente para pessoas dignas de merecimento. Dona Altina saiu desse mundo sem bulha, em silêncio profundo, como se não quisesse incomodar ninguém. Faleceu batendo asas, feito pássaro; o que na realidade era o que ela mais queria: morrer como um pássaro batendo asas, leve e solto levado pelas lufadas de vento. Sempre fora independente e livre, até na hora da morte. Talvez por acreditar que a morte é a superação da vida terrena e o ganho da vida plena.

- O negócio é cuidar da vida porque a morte é certa! – frase alentadora que sempre dizia.

Esta é uma síntese de vida, ínfima, pequena demais, para uma pessoa tão grandiosa e necessária nos dias de hoje: Altina Salvador Correia. Que deixou legados para algumas, mas, para aquelas que não tiveram a oportunidade de conhecê-la, resumo dizendo: essa pacificadora do mundo deveria ser Mãe de todas as mães, consequentemente, Vó e Mãe de adoção de todos os filhos. Seríamos mais de 200.000 milhões de irmãos, de pessoas progressistas, bem formadas, eticamente moralizadoras, envolvidas num só objetivo: a busca em atingir a excelência como cidadãos. Em buscar a paz ecumênica: o ápice da vida. À ela devo tudo: a minha formação moral e ética. Aos meus amigos: atenção. Aceite dona Altina, o meu carinho, respeito e gratidão. Diante do seu inefável ciclo vital, aceite esta singela, porém generosa dedicatória. Só mesmo Deus pode dar-lhe o que realmente fizestes por merecer: A VIDA ETERNA. AMÉM.

Faço saber dona Altina, que o amém vai muito além de ser somente meu. Foi dito pelo bairro do Bom Jardim, para ser mais exato, vai além do bairro Bom Jardim, enfim, o amém foi vociferado pelo município de Matozinhos e reverberou por alguma parte do estado de Minas, mais precisamente, pelos lados da Serra do Cipó, região de onde a ilustre vó viera.

Naquela manhã, recostado a um poste de energia, chorando copiosamente, agradecia aos céus por ter tido dona Altina como mãe e enquanto fazia a minha despedida particular, apreciava o alvoroço de amigos, parentes e crianças, o que aclarava o quanto ela foi e continuará sendo benquista naqueles arrebaldes. Assim que partiu o cortejo fúnebre em direção ao cemitério, ouvi nitidamente um grito vindo do céu - para não dizer um berro - “AMÉM e PAZ ETERNA PARA QUEM FEZ POR MERECER”.

O terceiro milênio aproximava-se e com ele uma torrente de fatos descabíveis tomava sentido e trazia ainda mais à tona a TCA: Trágica Cultura do Absurdo. Devido a essas radicalidades funestas, hoje entendo que era realmente necessário que tenha chegado momento para que dona Altina obtivesse a paz dos justos e humildes; pois, raras, minguadas, pouquíssimas foram às vezes que ela deparou-se com a paz, mesmo que fosse por um segundo neste espaço terreno. Sua missão como mulher, amiga, esposa, mãe, educadora, filósofa, psicóloga, visionária, profeta do arauto e religiosa foi árdua. Cruz pesada demais para quem veio ao mundo predestinada a sofrer as consequências de ter que arrastá-la. Nesse ponto, vagamente, as histórias de dona Altina, dona Cristina e Jesus Cristo assemelhavam-se.

Mais alguns léxicos sobre dona Altina:

Dona Altina com seus 1m e 50cm não era alta mas agigantava-se de cativa altivez.

Pensando a sua época: a águia que voava a vários anos luz à frente de seu tempo.

Realizando o papel, para o qual veio ao mundo: a mãe, quando se propõe a ser mãe, é no mínimo, mãe duas vezes. E não escolhe quem serão os filhos adotados.

Uma pergunta já imediatamente respondida: não é de se admirar que Deus tenha dado méritos, talento e dotes a algumas pessoas com a mão esquerda. Diante da síntese biográfica, será que dona Altina reunia méritos suficientes para ser tocada pela benevolente mão do criador?

Sobre o seu princípio moral, ético e espírito de liderança: a moralização é legado de pessoas moralizadoras. Nesse contexto, o verdadeiro líder não ordena a outrém a executar as tarefas, conscientizando os subalternos de como fazer, as executa!

Sobre o seu mapa astral: pouco andou, caminhou e menos ainda, viajou; entretanto, em transcendência conhecia o mundo. E embora tivesse o dom de divagar sobre o subjetivo e inusitado, só se encontrava em si mesma.

Sobre o seu pensamento humanitário: “os viventes do planeta terra são protagonistas atuantes e fazem parte da minha história. Visíveis, ou não, somos energias e os elos moleculares são as formas de interação entre os átomos. Muito agradeço e que tenhamos longos elos de ligação”.

O que era latente em dona Altina, porém tácito em palavras: no uso de suas atribuições legais, a precisa consciência, não precisa da imprecisa, ciência. Aliás, além de manipuladora, a ciência age como uma mola propulsora, corrompendo as consciências. Que um dia vindouro, a ciência tome consciência, de que a consciência esta acima da ciência.

O significado de excelência para ela: embora seja possível realizar um trabalho útil sem que se saiba ler, escrever, contar e sem título qualquer, admitamos que nem sempre é possível prescindirmos de tais domínios. Atribuamos a essa forma de conhecimento, por mais graduado que seja, o lugar que lhe é devido, nada além.

Sobre a formação atual: "Filhos como estão produzindo atualmente, se pertencessem ou tivessem vividos debaixo de meu teto, dispensaria que me chame de Mãe. Filho meu de fato, inicia honrado o seu sobrenome. O substantivo Filho somente, nunca foi e nunca será, sinônimo de honradez maternal!

2002

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 06/05/2015
Reeditado em 09/05/2015
Código do texto: T5232557
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