Amélia, a faxineira das Torres

Na semana em que completou meio século de vida, Dona Amélia se recorda dos momentos em família e da vivência rural, dos cheiros e sabores da roça. Suas origens estão enraizadas numa comunidade agrícola onde existiam os engenhos de açúcar, cachaça e farinha nas proximidades do Morro do Forno. Lá se desenvolveu um povoado de famílias negras de origem quilombola com poucas habitações de pau a pique dispersas entre a mata, os morros e as lavouras de subsistência. Segundo sua bisavó Honorina, seus antepassados vieram da África do antigo Reino do Congo, embarcados nos navios negreiros e cativos chegaram no Brasil forçados a trabalhar nas sesmarias de Santo Antônio da Patrulha, no litoral norte da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul nos idos do século XIX. O avô, um preto forro, chamado João Honorato, pitava seu cachimbo e cultuava seus orixás, ensinando aos seus filhos e netos a cultura africana que emergia da memória dos seus antepassados. A infância de Amélia foi marcada pelo trabalho na roça de mandioca e de milho, plantio e colheita da banana e da cana de açúcar. Lembra do barulho do pilão, o cheiro da terra molhada e do ruído do carro de boi.

Na sua juventude, foi para a cidade para trabalhar numa casa de família por indicação de uma prima distante. Com 14 anos de idade aprendeu os dotes necessários para o trabalho doméstico, a limpeza minuciosa e a culinária saborosa, saberes aperfeiçoados pelo resto de sua vida. A mudança para a cidade trouxe profundas transformações na sua vida, o cotidiano “apertado” diferente do tempo da vida rural e a saudade de sua família. Entre uma folga e outra, Amélia conhece José, negro, robusto e letrado, um trabalhador da construção civil, e se apaixonou profundamente pelo olhar encantador do galanteador rapaz e seu sedutor bailado, gingando para um lado e para outro. Formavam um casal formidável e dançavam à noite toda nos bailes do salão paroquial. Casaram-se e foram morar num bairro da periferia onde construíram sua casa de madeira próximo de alguns parentes que tinham migrado para a cidade em busca de trabalho na época de verão. Logo nasceram seus dois filhos e uma filha; o primogênito era João Cândido, o intermediário era o Francisco e a caçula era a Maria Joana, em homenagem à bisavó de José. Após 22 anos de matrimônio acontece uma tragédia, quando José sofre um acidente no prédio onde trabalhava. Um andaime despencou do quarto andar lançando José violentamente ao chão, comprometendo o movimento de suas pernas. Ficou seis meses hospitalizado e faleceu para a tristeza da família de Amélia. Nenhuma indenização trabalhista traria de volta a vida daquele trabalhador, pai de família e um marido apaixonado... Como faria Amélia, viúva, mãe de três filhos e uma casa para sustentar?

O trabalho e os cuidados com a família foram seu consolo diante das adversidades financeiras e os momentos de turbulência emocional. O contato com a associação de bairro e o clube de mães fortaleceram suas amizades envolvendo-se em eventos socais e ações comunitárias. O trabalho como diarista garantia o sustento da família com auxílio financeiro dos filhos mais velhos. Era uma labuta que exigia horários rígidos e a fadiga consumia seu corpo com o passar dos anos de repetidos movimentos de escovar, limpar, arrumar, deslocar móveis pesados, lavar, cozinhar e cuidar dos filhos e filhas e do bem estar dos seus patrões. Acompanhou nos noticiários que as domésticas conquistaram alguns direitos, mas não a incluía, pois era uma trabalhadora informal. Para Amélia, pouco importava sua carga horária excessiva continuaria com ou sem privilégios, sua clientela foi conquistada com apreço ao longo de sua experiência na carreira e era muito reconhecida pela dedicação e seriedade. No verão abriam vagas de camareiras nos hotéis da cidade e era uma chance de assinar a carteira de trabalho, mesmo que seja temporariamente. Amélia se dividia assim: no inverno era diarista e no verão camareira.

Na vida pessoal, Amélia sofreu duros golpes com o falecimento do seu marido José e o processo de indenizações que nunca chegou a um veredicto judicial. Sofreu um tremendo desgosto quando viu seu filho mais velho, João Cândido envolvido com o tráfico de drogas e roubo. Com fé rezava para seu santinho padroeiro e sentia o vazio que José deixou na criação de seus filhos. João Cândido foi preso e sua mãe nunca desistiu de sua dignidade e logo na primeira oportunidade o encaminhou para o tratamento contra a dependência química, um curso técnico e um emprego formal. Amélia sempre confiou numa vida de árduo trabalho e na honestidade e sempre alertava seus filhos para o “poder do conhecimento” na transformação de suas vidas. “Só o conhecimento liberta, meus filhos”, repetia ela como um mantra em todas as oportunidades possíveis. Francisco sempre foi um aluno exemplar e desde sua tenra idade estava focado nos estudos para os concursos públicos e vestibulares. Seu sonho era ser o primeiro da família a ingressar na universidade. A pequena Maria Joana, era uma parceira inseparável de sua mãe, mesmo sendo uma jovem menina tinha maturidade avançada forjada pela vida dura. Um dia quando ia fazer seus deveres de casa, espiando a curiosidade de sua mãe e sabendo que ela não teve oportunidades para estudar e mal sabia assinar seu nome, Maria Joana indaga Amélia: “Mãezinha, a senhora não gostaria de estudar? Na minha escola tem turma de adultos!”. Envergonhada, a mãe recusou, alegando que era uma “ignorante” e “muito burra para pegar num lápis e num caderno”. Chegando à noite, quando foram rezar para dormir, os olhos marejados da filha encontram a face cansada de sua mãe e com a suavidade das doces palavras que saem de sua boca, Amélia escuta baixinho: “Mãe, você é a pessoa mais inteligente que conheço.” Uma lágrima escorreu em seu rosto e um nó na garganta dessa humilde senhora, encontraram sabedoria no carinho de sua filha. Naquela noite, Amélia deitou decidida a encarar um novo desafio: tornar-se uma estudante.

No dia seguinte, a mais nova aluna da Educação de Jovens e Adultos estava matriculada na escola próxima de sua residência. Começou a frequentar as aulas, conheceu professores e professoras e ampliou seu círculo social com novos colegas. Apesar das dificuldades de conciliar os serviços domésticos, o trabalho e os estudos, Amélia continuava persistindo com o sonho de chegar na formatura do ensino fundamental e depois do ensino médio e quem sabe, um dia em algum curso técnico ou mesmo na faculdade. Seus horizontes se ampliaram e sua iniciativa estava valendo a pena, todos os esforços eram recompensados, apesar das críticas de algumas amigas que afirmavam que ela estava muito velha para estudar e que nunca precisou dos estudos para nada! Amélia, a faxineira das Torres, não se abatia, gostava de ler e de escrever poesias, se mantinha informada, debatia sobre política e mergulhava nos livros de história. Era um mundo que se revelava para essa humilde senhora, que aprendeu a ser feliz na “faculdade da vida” e nunca abriu mão de ter esperança num futuro melhor!

Publicado no Jornal Litoral Norte e Jornal A Folha.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 04/06/2015
Reeditado em 08/06/2015
Código do texto: T5266097
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