SOLIDADE, A FEIRA DO PILAR E MARIA MAGRA

SOLIDADE

Solidade foi para nós como uma segunda mãe. Na nossa infância era ela quem preparava nossa alimentação, cuidava de nossa casa, de mim e de meus irmãos como se fossem seus verdadeiros filhos.

Quando minha mãe quis queimar a língua de meu irmão Marcone com um tição de fogo porque ele era um chamador de nomes feios, foi Solidade quem impediu que ela consumasse seu intento. Na realidade, não sei se minha mãe realmente pretendia queimar a língua de meu irmão ou simplesmente dar-lhe um susto. O fato é que Solidade estava sempre atenta para nos defender na hora em que a coisa ficava séria. Solidade era mais do que nossa advogada, era nosso anjo protetor e minha mãe tinha respeito por ela.

Solidade era estéril, não podia ter filhos, talvez por isso dedicava-se tanto aos filhos das famílias nos lares onde trabalhava.

A verdade é que as manhãs, as tardes e as noites tinham mais graça com a presença bonachona e solidária de Solidade. Sempre falante, sempre disposta, sempre bem humorada. Ela parecia uma personagem dos romances de José Lins do Rego, Jorge Amado e Monteiro Lobato. O brilho de seus olhos, quando nos via, era mais radiante que a luz do sol nas manhãs e das estrelas nas noites.

Solidade era muito generosa para conosco. Quando estava fazendo comida de milho, dava-nos, às escondidas, colheres de angu quente pelo buraco da parede para minha mãe não ver. Cantava-nos lindas cantigas que aprendeu nas brincadeiras de cavalo marinho e coco de roda. Catava pacientemente os piolhos de nossa cabeça e ainda fazia cafuné de um jeito que só ela sabia fazer. Sabia contar estórias de príncipes e princesas. E ela arrumava sempre um tempinho para entrar na nossa brincadeira.

Foi ela quem certa vez convenceu minha mãe para nos deixar acompanhá-la até a feira do Pilar, numa manhã de sábado. Lembro-me como se fosse hoje... Passamos a madrugada acordados. Ansiosos. Foi a nossa primeira aventura fora do Sítio Chã de Areia. Pois nunca tínhamos visto uma feira de perto. Que maravilha!

Mas um dia veio a triste notícia: Solidade iria se mudar para a Serventia do Pilar. Meu pai já tinha, inclusive, providenciado uma casa para ela e Seu Júlio, seu marido, morarem. Não nos disseram o motivo...

Um silêncio de morte tomou conta do Sítio Chã de Areia. O tempo nublou. Até os passarinhos esconderam-se. Emudeceram. Meu Deus! Que tragédia para o mundo mágico de nossa infância foi a saída de Solidade.

A sua partida, em cima de uma caminhoneta, com poucos móveis, foi dolorosa de mais. Um pedaço de nós partiu junto com ela... E ela ficou para sempre habitando as nossas lembranças!

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A FEIRA DO PILAR

A nossa infância foi uma aventura extraordinária! Nunca me esquecerei da primeira vez que fui à feira do Pilar, acompanhado por meus irmãos e tendo como guia Dona Solidade que morava em nosso sítio e que era como uma segunda mãe para a gente.

E lá fomos nós naquela manhã de sábado, todos a pé, bem cedinho, rumo a tão sonhada feira do Pilar. Levando topadas pelo caminho, e cada qual com um desejo no coração. O meu sonho era o de comprar uma balinheira para caçar passarinho na mata de Seu Edrísio.

Depois de quarenta minutos de caminhada estávamos chegando na Estação que fica na chegada da cidade. Onde lá, em pé na calçada de um galpão da Rede Ferroviária, avistamos uma mulher pretinha, conhecida por Chibata Preta. Ela cozinhava a sua refeição matinal ali mesmo, em uma lata velha, suposta sobre duas pedras, naquele fogo de lenha improvisado no chão da rua. Confesso que fiquei com medo. Foi ai que apressei o passo.

Já estávamos pertinho da rua grande, pois só restava agora dobrar na esquina do Silva, passar na ponte, e pronto!... Finalmente a feira!!! A feira com todos os seus encantos! E ela era do jeito que eu imaginava, com muitos brinquedos pendurados nos bancos cobertos de lona, brinquedos expostos no chão da rua, brinquedos também nas lojas... Confesso que nunca vi tantos brinquedos juntos. Infelizmente meu dinheiro só dava para comprar mesmo uma balinheira.

Depois, em nosso regresso, ainda tomamos um refresco geladinho, com pão doce, na mercearia de Seu Silva.

E, sem tirar o olho um só minuto balinheira, voltara feliz para casa... Atirando pedras nos socós que mergulhavam no Riacho do Figueiredo.

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MARIA MAGRA

Maria Magra era casada com um sertanejo e tinha três filhos graúdos. Vieram morar em uma casa de barro no Sítio Chã de Areia, num dia de sol, quase sem nuvens no céu.

Ela seria muito bem vinda ao paraíso de nossa infância, àquele recantinho especial do Pilar, não fosse para provocar inferno na vida de Solidade.

Maria Magra era como uma cobra peçonhenta destilando seu veneno por onde passava. Foi a pessoa mais invejosa que já conheci! Ela não suportava ver a alegria de Solidade trabalhando em nossa casa e sendo considerada como uma pessoa da família.

Solidade, diariamente, entrava e saía de nosso lar, para realizar as atividades domésticas, porém ela nunca saía de nosso coração. Além de trabalhar com muita responsabilidade, Solidade tinha outras virtudes que nos encantava. Ela trazia consigo a simplicidade da vida. Sabia o segredo de ser feliz com tão pouco. Ninguém conseguia ficar de mau humor por muito tempo na presença agradável de Solidade. Ela trazia consigo o dom da descontração e da alegria.

Mas tudo isso mudaria com a chegada de Maria Magra em nosso sítio. Pois ela não suportava ver outra moradora desfrutando da confiança e do afeto de toda nossa família.

Não demorou muito e Maria Magra aproximou-se de minha mãe para semear as suas sementes do mal.

- A senhora está dando muita confiança a Solidade. Ela até viaja sozinha com seu marido para fazer compras no Pilar. Tenha cuidado, pois homem é bicho danado. E Solidade é uma morena muito bem feita. Olhe, de onde eu vim, meu patrão largou a esposa pra se amigar com uma empregada!... Não brinque não que a senhora está correndo um grande risco! A esperta conquistou até seus meninos, parecem que eles gostam mais dela do que da senhora.

A realidade é que depois dessa conversa a minha mão não foi mais a mesma. Olhava para Solidade com um olhar de receio. Observou como ela era bem feita de corpo mesmo. Começou a observar o comportamento dela quando estava na presença de meu pai. E começou a ver coisas que não existiam e a fazer julgamentos equivocados.

- Severino você pare com tanta liberdade com Solidade! Eu agora estou enxergando o que não via. Meu Deus como eu fui tola!

- O que é isso, mulher? Você andou bebendo escondida foi? Solidade é para mim como um homem. Ela sempre me respeitou e eu respeito ela também.

Mas cada dia, cada semana que passava, Maria Magra envenenava cada vez mais a cabeça da minha mãe contra Solidade. Até que um dia minha mão não agüentou e disse para meu pai: “Severino, você decida. Ou você manda Solidade embora do sítio ou quem vai embora sou eu!”.

A minha mãe falou sério. Certo dia arrumou suas roupas para ir embora. Meu pai, para por fim a aquela confusão, então concordou em mandar Solidade embora. Mesmo sabendo que ela era inocente.

Solidade chorou muito com a calúnia de Maria Magra. Ela sabia que aquela enviada do Diabo estava por trás de tudo isso. Mas não podia fazer nada. Minha mãe acreditara em tudo que ela inventou.

Mas o que mais machucou o coração de Solidade foi a nossa separação. Deixar-nos, eu e meus outros três irmãos pequenos, tão apegados a ela, sem os seus carinhos... sem os seus cuidados... sem o seu fraterno amor...