DECEPCIONADO COM O CLODOVIL

Sim. Decepcionado com o Clodovil era o que eu ouvia do meu amigo. Eu o observava em silêncio enquanto ele tomava o seu chimarrão, um hábito que ele trouxe da sua terra tão distante daqui, e falava da sua decepção com os políticos em geral enquanto acariciava a cuia e sugava o líquido com parcimônia, reverência, prazer... Embora falasse dos políticos, era notável a sua ligação com aquele ritual de despejar água quente dentro da cuia cuidadosamente arrumada pela metade com erva mate, deixando a outra parte livre para receber a água; a bomba era cuidadosamente colocada de forma que definia o lado direito da cuia para a erva de maneira que ela nunca poderia ser passada ao outro tomador de chimarrão com a mão esquerda – me explicara noutra oportunidade.

Ficava absorto, quase em transe, olhar para o chão, ou para a cuia, mas, notadamente para um horizonte imaginário entre eles enquanto desfilava as suas lamentações. Não pude de deixar de ver a imagem de uma criança agarrada a uma mamadeira ou a um seio, por causa dos gestos, do olhar distante, só cruzando com os meus olhos quando o ronco da cuia o despertava para despejar mais água dentro dela:

- Vai uma?

- Não, obrigado. Esse trem é estimulante, depois eu não consigo dormir...

- Bobagem, não faz mal não!

- Eu não disse que faz mal, eu disse que é estimulante e eu sou meio lobisomem...

- Como assim? O que tem uma coisa a ver com a outra?

Sorri.

- É que eu não me acerto com qualquer coisa estimulante depois das 17 horas, nem café, pó de guaraná, coca, a cola, chá preto, essas coisas... Se tomar não consigo dormir antes das três da madrugada; Lua Cheia já é um problema para mim...

Disse, apontando para o horizonte, passava das 18 horas e a lua redonda subia no nascente.

- Ala puxa!

- Se eu tomar uma dessas hoje, vou ficar escrevendo bobagens até clarear o dia...

- Hummm!

E voltava ao seu seio...

- Pois é, eu já acreditei no Brizola, no Pedro Simon, Fernando Henrique, Lula, João Figueiredo...

E perdia-se nas suas reminiscências:

- Olha, ultimamente eu andei apostando as minhas fichas no Fernando Gabeira; o Clodovil era uma esperança: a minha mãe falava tão bem dele, do tempo em que ele realizava o sonho de tantas moças pobres terem um vestido de noiva... Ele sempre foi tão claro na defesa dos seus pontos de vista, coerente com tantas coisas; logo na chegada desmontou com o Maluf... Mas, em seguida, foi bater boca com a Deputada que, por sua vez, nos premiou com aquela cena deprimente da choradeira no ombro do Presidente da Casa. Depois, teve o evento no avião... Perdi as minhas esperanças, me decepcionei!

A cuia roncou novamente e ele cruzou o olhar comigo, fazendo-me pensar no que poderia dizer-lhe para alentá-lo um pouco e ver se ele desmamava daquela bomba:

- As pessoas são o que são; nós é que projetamos nossas expectativas sobre elas por causa do que elas demonstram ou nos fazem pensar que são assim ou assado por conta do que nos apresentam através da sua imagem pública...

- Mas, o Clodovil...

- Imagem, meu amigo, imagem... O Clodovil é o que ele é, talvez o poder só tenha feito com ele o que faz com todos: desperta o Deus que há em nós, realçando o que temos de mais forte e evoluído em nossas personalidades.

- Mas, tu estas querendo dizer que o Clodovil é um Deus?

- Sim, ele e todos os seres humanos; a Deputada era uma Deusa aviltada pelo Deus Clodovil, que se queixava ao Deus Pai da Casa...

- Tchê, quando eu vi o homem se queixando por ter sido desrespeitado na sua condição de pessoa na terceira idade, desmoronei: o que dizer do monte de sexagenários e mais que atravessam madrugadas nas filas do INSS, dos Hospitais Públicos e Postos de Atendimento de Saúde, sem falar naqueles que morrem nas filas ou corredores esperando por atendimento?

- Pois é, não fosse o Poder talvez ele estivesse com o rabo entre as pernas, engolindo sapos e amargando a desgraça de ter eleito pessoas erradas para exercerem o Poder em seu nome. Mas, o Poder que lhe foi delegado despertou as características mais fortes do seu Deus Interior e o colocou à mostra aos nossos olhos...

- Mas, tu dissestes que realça o que temos de mais evoluído e o que vemos nos nossos políticos é a coisa degradante em evidência...

- Pois é o que eles têm de mais evoluído, não vejo a menor contradição nisso, repare bem... Nós não temos como selecionarmos previamente os candidatos pela sua ficha de bons serviços prestados à Sociedade e capacitação pessoal, com ficha limpa, sem sombra de suspeita de corrupção...

- Barbaridade! É verdade, chê! Então o Renan é um Deus com o que ele tem de melhor?

- Sim, ainda que o melhor dele não seja o que gostaríamos que fosse para quem exerce o poder que lhe foi delegado.

- Nero era um Deus!

- Sim. Nero, Hitler, Roosevelt, Bocassa, Geisel, Lênin, Paulo VI, Gandhi, Dick Cheney, todos Deuses...

- O Lula! Os Ministros do Supremo! Senadores e Deputados...

- Claro. Com o que eles têm de melhor ocupando o pico mais alto de suas consciências...

- Mas, tu enumeraste muitos assassinos e nem todos eles são carniceiros...

- Veja bem. Veja bem...

- Como assim, Teatino?

- Quantos que você pensa que um Deputado ou qualquer outra autoridade ou “empresário” matam quando desviam recursos necessários às populações carentes? Eu já vi criança morrer por causa de verminose, meningite, dengue...

- Governo incompetente, corrompido e corrupto, o produto de homens com o que tem de melhor de si exercendo o Poder. Que interessante...

E, mergulhando de novo na sua relação com a cuia, ficava ali balançando a cabeça lentamente de um lado para outro me fazendo imaginar em que ícone mamava...

Roncando de novo a cuia, desviou o olhar do seu horizonte imaginário e ofereceu-me:

- Vai uma?

Olhei para a Lua que agora era uma bola-de-prata a uns trinta graus da linha do horizonte. Seria deselegante de minha parte declinar de novo da sua bebida tão apreciada? Pensei, olhei para a Lua:

- Acho que não fará mal...

Ao encher a minha, acabou a água.

- Me aguarde, vou esquentar mais uma chaleira...

E levantou-se indo na direção da cozinha, deixando-me sós com a minha cuia de chimarrão. Com cautela, por causa da água quente, tomei o primeiro gole pensando se me veria agarrado a algum peito imaginário mamando um pouco, mas, surpresa, assim que o amargo da erva desceu pela minha garganta o que vi foi espantoso: primeiro foi o Brizola que se aproximou falando pausadamente em matear um pouco; o Getulio vinha lá longe, despassito, sorrindo, de braço dado com o Roosevelt; em sentido oposto apareceram, Adolf, Mussolini e o Imperador Japonês; o Nero chegou num rompante, fazendo um cavalo-de-pau com a sua Biga, trazendo de carona Paulo VI e Sindona; Lênin vinha acompanhado de Stalin, Stedile e Chaves; Dick Cheney vinha cercado de árabes que não pude divulgar direito quem eram... De repente o meu chimarrão virou uma tertúlia! Que turma fui arrumar com esse negócio na mão, pensei.

- Credo!

Exclamei de espanto: o Saddam viera de pescoço destroncado, parecia com o do Frankensteim. Puxando jegues apareceram Lula, Sarney, Collor e Renan, mais atrás dava para ver que estavam chegando mais três presidentes de partidos e a coisa ia engrossando: do alto, apareceu um enorme helicóptero do qual desceu primeiramente uma figura que parecia um gnomo vestindo uma túnica branca, um gorro e sapato vermelhos, seguido por nada menos que o Jorge W. Bush!... Olhei em direção da cozinha, o meu amigo se demorava e eu ali, segurando firme a cuia e tomando o seu chá amargo e quente, pensando: é hoje que não durmo nem com reza braba!

De repente, um arrepio, senti o meu corpo todo se remexer como uma cobra e, agarrando-me ainda mais firme na cuia, senti o Clodovil se achegando em mim, pedindo para dar uma chupadinha na minha bomba. Por sorte o meu amigo vinha chegando com a água quente e o povo desapareceu numa nuvem de fumaça:

- O trem forte essa coisa, sô! É hoje que não durmo.

Disse, alcançando-lhe a cuia.

- Bobagem, guri!

- Não sei como você agüenta com isso?

- To acostumado, tchê!

- E o Clodovil?

Cutuquei.

- Pois refleti no que tu me disseste e penso que tens razão: cada um é o que é e o Poder só expõe o que a pessoa tem de mais forte dentro de si...

Disse, enchendo novamente a cuia, agora mais conformado.

A Lua, bem, a Lua agora já passou bem do meio do céu. Está um dia aqui fora. Já escrevi essa história e nada do sono chegar, deve ter sido o chimarrão porque com a Lua eu já estou acostumado...

Chico Steffanello
Enviado por Chico Steffanello em 17/06/2007
Código do texto: T530724
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