FILHO MORTO

Vi a mãe velando o filho que sonhava e fazia sonhar. Que enchia a casa e o coração materno de alegria. Nos olhos daquela mãe as dores do mundo e da vida inteira, desaguando na eternidade que será cada instante a partir de agora, e sempre tendo a desaguar.Deu para ler na profusão de seus traços uma revolta contra o mesmo Deus que há pouco mais de vinte anos foi alvo de sua gratidão. Foi quando o filho nasceu, dádiva indizível enriquecendo o lar e banhando rostos de felicidade. Fazendo a vida multiplicar sentido. Florescendo em lábios de sorrisos amplos.Uma revolta silenciosa, porque a tradição ensina que Deus sabe o que faz. Uma tristeza resignada, porque não se pode blasfemar. Um desejo de morrer também, de não ter nascido, de compor a inexistência e nunca ser lembrada por seja lá quem for. Mas "a vida continua"; infelizmente continua e não tem jeito.Mãe não pode ver filho morto. Quando isto ocorre a natureza peca, tudo fica sem princípio, nada se harmoniza. Ver um filho morto é perder as esperanças, anular a fé, ter desfeito o chão. Morre o filho, a mãe vira espectro, acaba o mundo, ficando ela enterrada em si mesma, pois nada mais importa.Filho não pode permitir-se a morte, se a mãe é viva. Tem obrigação de viver para que ela o sinta, o ame, o respire como fragrância vital. Só vale a pena para ela se lá estiver ele. Distante ou perto mas estiver, existir, garantir a própria vida em razão da materna, que em caso contrário não será vida.Vendo a mãe velando o filho fiquei ainda mais longe da profusão dos credos. Passei a duvidar bem mais da divindade além, pois ela está no chão, na força do amor de mãe, quando a natureza desse amor também não peca. Divindade humana que seria também duvidosa se fosse forte o suficiente para suportar tamanha desventura.Feliz o filho que sabe fazer jus ao amor materno, enchendo a mãe de orgulho e paz. Aquele filho que a faz chorar de emoção, saudade boa, e depositar nele as mais belas e doces perspectivas de que o mesmo nunca morrerá.Bendito é o filho que amando e sendo amado consegue entregar à mãe o certificado afetivo de missão cumprida ficando adulto, realizando-se no amor e nos ideais... mostrando-se homem - ou mulher - de bem... honrando a bênção de uma criação pautada por princípios de amor e de plena cidadania.Bem-aventurado o filho que vê a mãe morrer tranqüila, sem nenhuma sensação de que deixou a desejar quanto a ele. Tristeza profunda - porém feliz - é esse filho saber, ao velar a mãe, que além das alegrias que lhe deu em vida, está dando mais essa: a de não ter morrido antes dela.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 17/06/2007
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