Boa Alma e(m) Agonia

Ítalo Ferreira da Silva – este era seu nome, mas se alguém assim por ele perguntasse, dificilmente conseguiria localizá-lo, já que era conhecido por todos por seu apelido e que tão bem o retratava – Boa Alma.

Boa Alma foi um daqueles que chegou, experimentou da boa pinga, do bom papo, sentiu-se em casa e integrou-se à vida e ao folclore da cidade, vivendo em Mimoso até o último de seus dias, neste recanto que o adotou como se filho.

Pouco se sabe de sua vida anterior, egresso do Rio de Janeiro, onde jogou futebol pelo São Cristóvão e parece que até pelo Vasco da Gama, ao lado dos grandes craques da época, comprovado por recortes de jornais que carinhosamente guardava ordenados em uma caixa de madeira envernizada, junto com o seu maior troféu – o prêmio Belford Duarte, concedido aos poucos jogadores que tivessem se destacado pela disciplina.

Talvez por sentir seu futebol decadente, já sob o peso da idade e da pinga, veio tentar a sorte no interior, em Mimoso, onde foi tomado de amores pelo Ypiranga, jogando algumas partidas e, ao final de sua forma física, passou a ser massagista e roupeiro do time principal, treinador dos times infantil e juvenil e zelador do Clube.

Seu apelido bem o definia – era realmente uma Boa Alma – sempre sorridente, amigo e camarada, somente saindo do sério quando, para implicarmos com ele, púnhamos em cheque a sua autoridade incontestável de guardião do patrimônio do Ypiranga, dizendo que quem ali mandava não era ele, mas sim o Coroa, que cuidava do gramado.

Nos últimos tempos, com o cérebro embotado pela pinga e após alguns “delirium tremens” , encheu-se de grandezas culturais e suas conversas eram recheadas de palavras difíceis, com expressões por ele criadas e logicamente desconhecidas de todos os meros mortais, já que inexistentes, ou, às vezes, utilizadas de forma desconexa e sem propósito, porém com grande sonoridade, parecendo até um desses economistas de hoje.

Era papo de louco, mas conversava-se com ele igualmente utilizando expressões sonoras e sem o mínimo sentido, por muito tempo sem que ele aparentasse não estar entendendo o que se lhe dizia, sem perder a pose e respondendo com suas expressões gozadíssimas, desconexas, sem qualquer sentido.

Em seu mais glorioso porre, ocorrido em uma daquelas noites frias de inverno que cobrem a cidade de neblina, Boa Alma e Agonia, este roupeiro do Independente, despencaram da ponte da rua do ginásio que se encontrava em obras, estatelando-se lá embaixo, à beira do rio.

Com braços, pernas e algumas costelas fraturadas e, principalmente, exauridos pela pinga de que haviam abusado, ali ficaram, aguardando socorro, gemendo de dor; um transeunte que ali passava, ouviu seus gemidos e perguntou, assustado pela noite nebulosa: - "Quem está aí?"

E, ao obter como resposta a voz soturna dizendo:- “É o Boa Alma e(m) Agonia”, saiu em carreira desabalada, somente retornando acompanhado e já com o sol quente, felizmente ainda a tempo de socorrê-los para um prolongado estágio no hospital.

LHMignone
Enviado por LHMignone em 24/09/2005
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