Minha rua

Pode ser até que outros discordem, mas seria por puro bairrismo e disto não abro mão: realmente, minha rua é a mais charmosa, sempre foi e continua sendo a mais importante das ruas de Mimoso – de tão completa, quase que se poderia viver somente nela, pois atenderia todas nossas necessidades, mundanas, culturais e espirituais.

Logicamente, estou falando de minha rua como ainda o vejo, dos meus tempos de Rua do Quartel, ou melhor, da Rua da Parahyba (assim mesmo, com h e y) e que depois passou a ser chamada de Presidente Vargas.

Eclética, em sua parte mundana, nascia na esquina com a praça principal, no Bar Guarani, com as mesas repletas das figuras marcantes de meu tempo de infância, fazendeiros e coronéis com os seus chapelões de feltro, sentados defronte a meia dúzia de xícaras de cafezinho, comprando, vendendo e trocando gado e café – Seu João Guarçoni, Ico com a sua barba negra, Tenente Elias com o seu inseparável charuto, Seu Lauro lemos, o Coronel Ascanio, com sua voz grave e austera, temida pela garotada – e, em outras, o copo canelado com a pinga Matinhos, ou a Brahma gelada, exigidas as de casco escuro.

De tempos mais atuais, o mesmo Bar Guarani era o ponto de referência para a compra dos álbuns de figurinhas, figurinhas estas que vinham às vezes em pacotinhos ou enroladas em balas, que escolhíamos nos vidros dispostos sobre o balcão de mármore, na esperança de conseguir as carimbadas, mais difíceis.

Defronte, na esquina que dava acesso à ponte, o Bar do Seu Velasques, com as rosquinhas cobertas de canela com açúcar e o posto telefônico que permitia, mesmo que somente com uma santa dose de paciência e à custa de muitas voltas de manivela, o contato com outras cidades.

Caminhando, ao lado, o Cine Teatro São José, com a bomboniére da Dona Sílvia, com as matines de domingo exibindo, além dos filmes de mocinho e índio, os seriados de Tom Mix, Zorro, e a garotada fantasiada de cow-boy, com o revólver ganho no Natal pendurado na cintura, explodindo espoletas quando o mocinho aparecia para salvar a mocinha, em seu cavalo branco, a galope.

No mesmo prédio, a barbearia do Nézio, sempre contando suas histórias de tempos passados, dos personagens ilustres de quem já cortara cabelos e feito barbas e bigode, e comentando, referindo-se a Adhemar de Barros – oh, bigodinho difícil, sô! Era nosso ponto de reunião, imediatamente após as aulas, para vermos as normalistas indo para o colégio, com suas saias pretas, rodadas, balançantes ao ritmo de seus passos, posicionando-nos estrategicamente para podermos ver suas pernas refletidas nas calotas dos fuscas estacionados.

Defronte, filosoficamente a nos lembrar de nosso imutável fim, a Ladeira da Igualdade que, após passar a Maçonaria, a sede da Rádio Difusora e a casa do Ciro Pitanga com suas melhores mangas carlotinha que já chupei em toda a minha vida, subia serpenteando pelo morro, até chegar ao cemitério.

Ao lado, imponente, o Banco do Brasil, que em outros tempos ocupou o prédio defronte, sob a casa do Seu Andrade, com ar austero e móveis de madeira escura, com Antoninho Motta trancado no caixa de madeira e vidro, entre grades protetoras, sisudo, fechado, imponente, compenetrado, mas sempre com um sorriso ao nos dar alguns elásticos para fazermos estilingues de dedo ou o motor propulsor de nossos carrinhos de carretel de linha; e ali também estavam os nossos sonhos de futuro, de fazermos concurso e sermos funcionários do Banco.

Defronte às casas de Seu Evaldo e Dona Miquita, onde roubávamos romãs e deliciosas jabuticabas e à oficina do Seu Zé do Correio, que nos levava a passear em suas motos e onde consertávamos e alugávamos bicicletas, a farmácia do Dr. Cisne, alto, grave, solene, com sua mula Calçada sempre pronta, arreada e estacionada para qualquer chamado urgente, com estantes de madeira repletas de vidros claros, escuros, rotulados com os estranhos nomes dos remédios ali mesmo manipulados.

E juntava gente, verdadeira multidão, adultos não só crianças, quando acontecia alguma acidente, principalmente na roça e, por necessidade de luz mais intensa, as cirurgias eram feitas ali mesmo na rua, na calçada, utilizando-se o balcão de atendimento como mesa operatória. E assistíamos, deslumbrados, apavorados, em absoluto silêncio, em meio ao sangue, mercúrio e iodo diluídos em água que escorria pelo chão, inebriados pelo cheiro forte de éter que nos deixava meio tontos, Dr. Cisne instruindo Dona Maria quanto às providências a serem tomadas, como sua assistente e instrumentadora; ele, solene em seu avental branco-amarelado amarrado às costas, competente com o bisturi afiado de lâmina de sapateiro nas mãos, cortando, costurando, curando.

Até mesmo, tenho que reconhecer, apesar da gravidade das situações, dos momentos, além da curiosidade, da expectativa, dos ares constritos de cada um, notava-se também um pouco de morbidez e um certo sadismo, esperando o momento em que o paciente, apavorado e com olhos súplices, sem o bálsamo de qualquer anestesia, chorasse ou reclamasse de dor – com a sua voz alta e grave Dr. Cisne sentenciaria: “Cala esta boca – seja homem – Maria já teve isto e não chorou como você...” e via-se um ar de desaprovação ao paciente e um sorriso disfarçado no rosto de todos, dando-lhe razão.

Do outro lado da rua, o lavador – uma estrutura de madeira com duas pranchas suspensas – para lavar os poucos carros que existiam na época, com água captada por bomba no rio que corria no fundo do “pasto do Dr. Cisne”, onde brincávamos de mocinho e bandido, catávamos goiabas nos pés e caçávamos rãs após as enchentes de fim de ano.

Mais adiante, logo após a casa onde nasci e vivi toda minha infância e juventude, ficava a B.E. , a loja de peças, garagem e oficina de Seu Maneco Miranda, com seu reluzente Chevrolet 53 conversível sempre parado à porta, ao lado da casa de Seu Zezinho Dentista, com sua prole numerosa e onde conseguíamos mercúrio para as nossas experiências.

Defronte, a casa de Seu Ciro Nogueira, em cujos porões fazíamos projeções usando retalhos de fitas de cinema, em uma engenhoca engenhosa com captações de luz do sol refletida por alguns espelhos e usando lâmpadas cheias de água como lentes, presas em caixas de sapato furadas; de seus porões também saiam os ovos que ganhávamos de Dona Teresa e com que fazíamos “baco-baco” , misturando suas gemas batidas com açúcar, farinha e chocolate (em minhas lembranças, esta mistura era deliciosa, mas meus filhos a detestaram).

Seguindo adiante, a tipografia e papelaria do João de Deus, onde comprávamos lápis, cadernos, canetas e tintas e com suas máquinas trabalhando em um ritmo cadenciado imprimindo de tudo, até os ingressos de cinema que algumas vezes surrupiamos e neles colamos selos de cigarros, sem que, contudo, conseguíssemos enganar Seu Zé, porteiro do cinema.
Após a esquina da Casa de Saúde, vizinho à casa de Seu João Guarçoni, o campo do Ypiranga, glorioso Ypiranga onde montávamos as chácaras nos sábados de aleluia, com árvores e bananeiras cortadas dos quintais da rua, com o balanço surrupiado da casa do Seu Andrade, devidamente habitada com os Judas que fazíamos com roupas velhas de nossos pais e recheadas de capim, no aguardo da vinda do Padilha, em seu jipe para nos reprimir.

Ali, no mesmo campo do Ypiranga, era onde jogávamos pelada todas as tardes, com nossos campeonatos de vôlei e futebol de salão e, aos domingos, acorríamos para vê-lo massacrar seus adversários no campeonato estadual , com a sua equipe de craques – Gerly, Gilson, Vaninho, Harley, Paulinho, Tonho, Hélio da Guia, Pedrinho Pitanga, Carioca, Bezerra, Brochado, Silvinho e outros, campeões invictos do sul do Estado e que golearam o time do Muqui por 13 a 0, o que foi noticiado até na Rádio Nacional.

Atravessada a ponte, o armazém do Massaroni e chegava-se ao Colégio Estadual e Escola Normal Monsenhor Elias Tomazi, nome imponente para um colégio imponente, onde mais zoneamos do que efetivamente estudamos, donde se conclui o enorme mérito de sua equipe de professores que conseguiu nos ensinar tudo o que sabemos e que nos permitiu construir algo na vida.

Lá, também era a sede do Grêmio Estudantil Graça Aranha, congregação dos alunos (que não mais existe e que eu gostaria de ver reativado), com suas sessões mensais e que eram motivo de festa, às vezes interrompidas pela fumaça do “gamexame” que outros soltavam e que até hoje juram que fui eu.

Nele foram organizadas as únicas passeatas de que Mimoso teve conhecimento, com todo o colégio entrando em greve em apoio à campanha por melhores salários para nossos professores, atitude subversiva que motivou sua interdição e proibição de funcionamento pela revolução de 64.

E por falar no assunto, para calar as más línguas que insistem em me difamar, dizendo que fui expulso do colégio pelo Dr. Mandale, tornando-nos inimigos irreconciliáveis, aí está a comprovação de que tudo são simples lembranças de um tempo glorioso que passou, mas que estarão para sempre gravadas em nossas memórias e que daríamos tudo para reviver...
LHMignone
Enviado por LHMignone em 24/09/2005
Reeditado em 08/09/2016
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