Sonhos

SONHOS...

1 - O ATIRADOR

Apoio o corpo sobre o topo da rocha, com a vista no horizonte árido. O sol do início de tarde é acalento. Engatilho a winchester manuseando a alavanca. Gosto do barulho do mecanismo quando aciono-a. O rifle está pronto, engatilhado. Só o dedo ao gatilho separa o projétil da sua liberdade fugaz rumo ao desconhecido de um conhecido. O olho é o farol, a mira é a guia. Sorrio: o tiro é sempre um prazer. Permaneço, atento, à espreita, indefinidamente. Paciência não tem limites...

2 - O ATIRADOR DE ELITE

A noite e o frio não minam minha determinação, tampouco o vento e a chuva rala. No corpo estático e em silêncio, deitado sobre a grama, só a respiração escondida pelo som das folhas a balançar é algo para além de olhos e ouvidos aguçados e atentos. A mira de infravermelho vasculha a noite, procurando, procurando. Vejo, invisível, integrado à noite, mais uma sombra indecifrável e (verdadeira e infalivelmente) mortal por entre os arbustos. É essa sensação de pertencimento e de onisciência que me fascina e mantém. Poder. Sou Deus, agora?

3 - CAVALEIRO

Toda a vastidão ante meus olhos se parece menos com um desafio do que com um caminho. Integrado ao cavalo, sentindo seu corpo, seu trote, seus músculos, sua respiração, mantenho-me ereto. Penso apenas, sem palavras, só imagens e sensações. Não preciso dizer a mim mesmo o que já sei só de olhar e sentir. O pensamento, assim, voa rápido, sem intermediários. A solidão vai apagando as palavras. Não são necessárias. Esporeio o cavalo e ele segue. Somos um só. O chapéu e a capa grossa excluem do contato com meu corpo a chuva forte que cai. Meu mundo permanece incólume. Só o caminho importa, metro a metro, em direção ao horizonte, rumo ao presságio indecifrável das nuvens negras.

4 - O CORREDOR

Corro noite adentro, por entre os infindáveis buracos do campo irregular. Veloz, meus coturnos saltam a aterrizam guiados pelo luar muito claro, fuzil firme nas mãos em frente ao peito. As pernas fortes parecem biônicas: não cansam, só correm e saltam, velozes. O pulmão é uma bomba de oxigênio. Me encontro ali, sem saber por que corro, apenas sigo, sem parar. Sou eu mesmo aqui? Repentinamente, estou sob os buracos e, como num filme, vejo-me saltá-los, em câmera lenta quando solto no ar, por cima, a velocidade normal retornando quando o coturno toca o chão. Sou eu ali? Vejo-me no passado? Em devir? Um momento depois estou no alto, assistindo meu deslocamento veloz. É um filme? Sou o ator? Sou espectador? Volto ao corpo, agora sinto a respiração firme, o peso da arma, o solavanco das passadas, o trabalho dos músculos. Sigo em frente. Porque sigo? Para onde sigo? Meu olhar está à frente. O que tem lá que me faz correr? Ou do que fujo? Não sei. Sigo, sigo, sigo...

5 - O PASSE PERFEITO

O número 10 está às costas de minha camiseta tricolor. Estou na intermediária. Armador, minha tarefa é surpreender e pifar o centroavante. É o que esperam de mim, é para isso que me pagam, essa é a minha glória, a minha fama. É para isso que vivo, para buscar, antes de tudo, esse prazer egoísta e solitário. As arquibancadas rugem, os corpos, atentos, movimentam-se freneticamente em campo. Espero a bola chegar, enquanto meu cérebro arquiteta o xeque-mate sobre aquela muralha concisa de camisas brancas à minha frente e redor. Não há tempo para demora, o passe vai ter de sair inesperado, perfeito, indefensável. Uma intuição toma a mente: tudo para e vejo o caminho estático a indicar a saída do labirinto dinâmico. Viro o corpo de lado e, de primeira, com o lado de dentro do pé direito, faço a bola se deslocar reta e rasteira, veloz. E ela vai encontrando o caminho livre e sem barreiras, como o imaginado e previsto. É tudo muito rápido. O centroavante avança na diagonal em sua direção, interceptando-a e seguindo livre em para o gol, em duelo desigual contra o goleiro. As arquibancadas levantam. Eu dou as costas. Já fiz minha parte, meu orgasmo e plenitude já foram alcançados. O passe perfeito, obra de arte, obra prima. O gol é um detalhe, obra de outro artista, bem mais simples, menos complexa. Uma alegria indizível toma conta de mim. Sou um mágico se olhando no espelho da alma, pra dentro, alheio à tudo. Não me importa nada além do meu gozo. É para ele que vivo, é por ele que jogo. Mesmo que minha genialidade não seja tão reconhecida quanto a do arte-finalista. Só minha opinião importa a meu espelho.

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Era isso pessoal. Toda sexta, às 17h19min, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.

Mais textos em:

http://charkycity.blogspot.com

(Não sei porque eu ainda coloco o link desse blog, eu perdi a senha e não atualizo ele há séculos. Até eu descobrir o motivo pelo qual continuo divulgando esse link, vou mantê-lo. Na dúvida, não ultrapasse, né. Em 2014 talvez eu dê um jeito nisso... Mas acho que continuarei seguindo o conselho que a Giustina deu num comentário em 23 de outubro de 2013.) PS - Em 2015, vou recuperar a senha desse blogue e mandar ver.

Antônio Bacamarte
Enviado por Antônio Bacamarte em 24/08/2015
Reeditado em 24/08/2015
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