SINAL DE ALERTA - I


Pela janela do carro me empurram folhetos e mais folhetos. Todos me dão conta de tudo que preciso para viver bem. Quantas coisas incríveis eu posso ter. Carro, cabelos bem tratados, dentes alvos, perfeitamente enfileirados como teclas de piano. As Kits... ah, as kits, que maravilha! São super versáteis e comportam qualquer coisa que eu queira, vejo na planta baixa bem decorada. Nelas eu posso morar e trabalhar. Sem contar que são perfeitas para qualquer orçamento, não só para meu. Magnífico como essas pessoas, tão boas, pensam em tudo para que a gente nem tenha que ter o trabalho de pensar. Dá até vontade de comprar uma só para não deixar o construtor chateado com a minha desfeita. Por que será que ainda há gente sem a sua  kit própria? E os planos de saúde? Eles me ofertam coisas fantásticas, se bobear até viverei mais tempo só para pagá-los. Até acho mesmo que preciso de um desses planos, porque haja saúde para agüentar, a cada sinal vermelho, uma enxurrada de mãos que se me estendem.

- Vai água aí tia? E o refri ? Tá geladinho!

Mais ofertas compulsórias me adentram o carro. Agora sou tia de uma legião de sobrinhos que trafegam entre os carros. Todos me fazem ser parte da grande família de sobreviventes dos semáforos, mais um filho dessa nossa  pátria-mãe-gentil. Há sobreviventes do lado de dentro e de fora dos carros.

Uma senhora, sentada no canteiro central entre as vias,  não vende nada, mas de lá comanda alguns  garotos lhes  dando orientações e indicativos dos melhores pontos de venda - leia-se aí carro. Gesticulando como quem agarra um pelo colarinho (se tivesse colarinho) ela ensina que os carros maiores são os mais promissores. E vai gritando nomes que se repetem esganiçados. 

- Menino, não fica muito tempo num carro só não... Amauriiii!!!.
AMAAURIIIIIIIIIIIII!!!!!!!

Falo comigo mesma: - Ô Amauri, danado, obedece à mulher!   Se ele obedecer ela pára de berrar? Não, não creio, ela parece um técnico dando instrução ao jogador que está em campo. 
- Ah menino, pára, pelo amor de Deus, senão vou acabar sonhando contigo... 

Indiferente o menino se enfia entre os carros. Quem não estiver atento nem o notará. É uma figurinha ágil e miúda que ainda não chegou à altura de uma janela de carro dos de  pequeno porte. Sua compleição denuncia que deve ter aproximadamente uns seis anos, no máximo,  e, faltam-lhe alguns dentes-de-leite na boca sorridente. E lá vai ele. À motorista do carro da frente oferece suas bugigangas, primeiramente com um sorriso, depois com uma cara de pobre coitado à beira do desprezo.  Imagino o diálogo:
 
- Ô tia, compra umas balinha aí pra judar a mãe! Pô, então dá  aí um trocado...

Amauri agora sorri. Um tio comprou seus produtos. Ele, olhando as moedas, sai correndo em direção à mulher sentada. O condutor da carreta que transporta uma coleção de carros novinhos, ainda sem placas, distraído fuma um resto de cigarro, cuja guimba é atirada logo a seguir no mato baixo e seco que um dia foi um gramado entre árvores frutíferas, ladeando o asfalto, enquanto expeli fumaça pelo nariz. Assustado com sua própria distração e a imprudência de menino - o "tico" de gente que sai correndo na frente daquele enorme transporte -  o fumante  aperta a buzina e soltas alguns palavrões.  Amauri olha sem entender. Mas, por via das dúvidas mostra o dedo para o "tio" da carreta. 


Enquanto tudo acontece o mais velho dos sobrinhos anuncia:

- Pano de saco alvejado! Pano de saco alvejado! Pano de saco alvejado!  SETE POR DEIZ, SETE POR DEIZ, SETE POR DEIZ...


Na balburdia, entre os gritos intercalados soam os da menina franzina e sardenta que, com mãos miúdas, me oferece panos de prato com pintura impressa - que insiste em afirmar que é arte dela mesma - num pano embainhado por máquina industrial. A indústria já está de olho nos diversos ambulantes dos semáforos, há zilhões de coisas que podem ser vendidas neles.  Alguém se habilita? 
"- Seja dono só seu próprio negócio!" Foi o que suposta mãe do Amauri aprendeu lá no Plim-Plim, e  já está gerenciando seu pequeno impreendimento com os seus pequenos empregados.  Enfim: EMPRESÁRIA.

Ouço outros  reclames promocionais:

-  Paçoca, chicreeeeeetes.... Paçoca, chicreeeeeeeeetes ...

- Jornal! Jornal... Jornal aí tia?


- A mixirica pukan ta um mel, a madame não vai levá não?

Bom, esse amigo dos sobrinhos achou que eu era uma bacana, madame da grana. Queria porque queria que eu pagasse cinco  reais por um saco de Mexericas Ponkan excessivamente verdes Num é que ele  está certo, afinal se posso comprar um carro, uma kit e fazer um plano de saúde, o que são cinco reais nesse universo de milhares? Mas eu detesto mexericas, o cheio nas mãos não paga o sabor de tê-las à boca. Não as compro.

Foi embalada no mote acima - o de que quem está do lado de dentro do carro tudo pode – que uma senhora maltrapilha, com panos enrolando a cabeça, se aproximou de mim, ou melhor, da janela do carro. Sempre me perguntei porque pessoas que pedem pelas ruas ou têm pano ou chapéu nas cabeças. O pano é sempre sujo e o boné ou chapéu sempre velhos. Esconderão piolhos? Ou será somente uma indumentária de trabalho que impossibilite o disfarce e que você o reconheça mais tarde? Maldade a minha, é só uma proteção para as intempéries..

- Ô minha filha, me ajude pelo amor de Deus! Disse a mulher.

Já não sou tia, agora sou filha, mas ela deve ter a mesma idade que eu, então deveria me chamar de irmã. Não, não dá ibope... Quem vai querer ser irmã dela? E, quem não ficaria penalizado em pensar sua mãe naquela situação? Finjo não vê-la enquanto organizo os folhetos. Ela vai embora me chamando de filha-da-p... Pronto, mudei de categoria familiar e minha mãe caiu na prostituição. Inconformada, sobretudo com a condição em que ela pusera minha mãe, mentalmente  chamei-a de vagabunda. Ora! Depois pensando melhor, ela é a p... afinal não foi ela quem estendeu a mão mendiga e me chamou de "minha filha"?

Já está quase dando o tempo do sinal mudar...

Os feirantes semaforais  sabem o tempo exato da venda dos seus peixes e a hora de recolhê-los.  Pensei-me invicta. Entretanto, em milésimos de segundos, do nada me aparece à frente dos olhos uma mão fantasmagórica, enrugada, calejada e incompleta, cujo cara do dono nem vi e, pela bagatela de vinte cinco centavos, adquiri um alívio instantâneo para consciências pesadas. Pena que ele só tenha validade até o próximo sinal vermelho. 

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Divina Reis Jatobá
Enviado por Divina Reis Jatobá em 22/06/2007
Reeditado em 07/07/2008
Código do texto: T536250
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