Diários de solidão - III - Quarta 28

Uma borboleta pousou solitária. Uma formiga caminha solitária. Uma capivara morreu solitária quase na margem do lago. Eu ando na mesma toada de solidão. Sinto-me intimamente ligado a essa solidão. Desde criança sinto essa desconexão e essa conexão. Parece que o desafio é exatamente esse. Aprender a viver consigo mesmo. Os dias são longos. Quando entrei na faculdade, senti essa solidão muito mais intensamente. Somos seres teleológicos. Não no sentido de finalidade, mas pensamos só no fim. Fim de semana, fim do ano, fim do curso, fim do dia. E por que não, por extensão e em última análise, fim da vida? Enquanto isso, tentamos nos distrair pra ver se os dias longos passam. Por isso que eu contemplava poeticamente aquela capivara morta. Estou a espera do fim dessa longa gestação de aprendizado de não sei o quê, não sei pra quê. Quero voltar para onde eu estava antes da vida pré-intrauterina. Para aplacar tal solidão nos viciamos (sexo, drogas, trabalho, jogos, comida, sono, relacionamentos, conversas, esportes...).

Eu estava confortável com toda a ideia de que eu vivendo muito bem minha solidão estava me afastando dos simulacros para não a ver. Podia sentir o arrastar do tempo em direção ao fim. Curtindo cada dor, cada impaciência, cada vontade de fazer o tempo correr. Eis que aparece uma pessoa. Uma menina. Uma mulher. Puxou assunto perguntando se eu tinha um cigarro. Eu disse que sim. Dei o cigarro pra ela. Emprestei o isqueiro. Mostrei a capivara morta para ela. Ela se interessou. Muito. Ela ficou feliz por ter me conhecido. Usou até a palavra "autista". Eu lhe falei que eu estava ali porque era um lugar seguro: não havia pessoas. Ela riu. Comentei mais sobre a beleza da capivara e as fotos que fiz desse momento ímpar. Lembrei-me do rapazinho do filme Beleza Americana. Ela riu. E comentou sobre uma fotógrafa alemã que poetiza com a morte também. Também? Eu nem vi que eu estava poetizando. Mas devia estar. Vinha um pequeno jacaré se aproximando da capivara. Mas seu objetivo não era a capivara. Talvez fosse só se aquecer um pouco. O companheiro dela parecia estar chegando. Durante todo esse tempo, trocamos poucos olhares. Na verdade, quase não nos vimos. Utilizamos muito mais os sentidos emocionais e psicológicos que nossa organoléptica. Ela foi pra um lado. Eu fui para o outro. Ela continuou sendo ela, sem nome. Eu continuei sendo eu pra ela, sem nome.

Yan Azaf Gomer
Enviado por Yan Azaf Gomer em 28/04/2016
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