Relíquias de uma caçador de sonhos - parte II

"There's a lady who's sure all that glitters is gold ..."

... era eu embalado pela potência do zepelin de chumbo, alçando vôo, desligando-me do mundo. Era eu preparando minha identidade.

Estávamos nós ali na boca da mata de Paulista - Castelo dos Lundgrens, já conhecíamos o caminho, pois nos intervalos dos jogos de futebol - as nossas saudáveis peladas em campo oficial -, nós íamos até lá para apanhar frutas de diversas qualidades. Antes de chegarmos a porteira principal que dava acesso ao haras, o cachorro à porta da residência do caseiro nos anunciava. Saiam de dentro da casa as crianças, a esposa, os gatos e o caseiro. Cigarro num canto da boca, chapéu de lado e a espingarda soca-soca, completavam a cena a cara de mau e o dedo no gatilho pronto a atirar. Prontamente alguns de nós já éramos reconhecidos por ele, que liberava o acesso pra nós. Nós podíamos pegar frutas à vontade, desde que comêssemos ali mesmo. Não nos era permitido descer do alto da mata levando as frutas que colhíamos. Pois, do contrário, complicaríamos a vida do caseiro. Ele estava ali para não deixar ninguém entrar naquelas propriedades.

Em outros momentos íamos somente para curtir toda aquela imensa floresta, com palmeiras históricas e caminhos intrincados. Justamente igual aquela tarde que saímos, logo após o almoço.

Aguardávamos as horas daquele sábado para irmos ao primeiro show do Arame Farpado, na Primeira noite do Cafuné, que aconteceria na sede do PTB, na Avenida João de Barros. Nossos caros amigos de jornada estelar já vinham ensaiando há um bom tempo e chegara a hora de mostrar o que eles eram capazes de nos oferecer a partir das influências que receberam do Cream, Led, Who, Sabbath, Hendrix, Yes...

Entramos na densa mata naquela tarde e passamos a colher e nos deliciar com suas frutas e quanto mais adentrávamos naquela floresta, mais a curiosidade nos impelia a percorrer seus caminhos. E veio a chuva, tudo ficou muito lindo de ver e ouvir. Éramos nós vivendo a poesia dos Borges, escutando os improvisos de Toninho... Sorrisos de satisfação.

Não era necessário abrigarmo-nos da chuva. Era o que Guilherme Arantes nos dizia em seu Rock: "deixa a chuva molhar". Àquelas alturas a magia já nos envolvia, éramos nós livres na mata podendo ouvir seus sons, pode ater-se ao som de seus autores. Ventos, galhos e folhas, pássaros, cigarras e saguis. Todos eles nos contando a sua história e fazendo a nossa história ser contada. Era uma tarde de sábado, com uma chuva na mata e o deleite de ver de repente aquele pôr de sol por entre as copas das árvores. Jamais esquecerei aquela energia vermelha nos dizendo amém.