Residência no meio do elevado.

Carteira misteriosamente desapareceu da bolsa, onde deveria estar. Celular descarregado e não havia qualquer local reserva para um dinheirinho emergencial, como aconselhava uma amiga.

Todos seus familiares residiam fora da cidade, não sabia o número de nenhum amigo. Distante 7 quilômetros de casa, optou por ir caminhando. A região em que estava era um ponto crítico da cidade, ponto de drogas, calçadas ocupadas por sem teto, catadores de recicláveis, e imigrantes ilegais. Sentiu-se em risco, mas por outro lado, se levassem sua bolsa não teria, agora, muito a perder.

No meio do caminho tinha um rio, tinha um viaduto no meio do caminho.

Visualizou na lateral uma passagem protegida por uma grade , acreditou que aquele acesso acompanharia o elevado até a avenida do outro lado do rio, e por ele foi seguindo. O mau cheiro da região se intensificava muito naquele trecho, muito lixo pelo chão, resto de alimentos, fezes, vômitos, e outras coisas que ela não saberia reconhecer. Em sua frente seguiram dois jovens, ela andava tão apressadamente visto que prendia a respiração que logo pediria licença para ultrapassá-los.

Um homem sentado na divisória de concreto perguntou para onde ela ia. Com medo ela só apontou no sentido da avenida além do rio.

- Aqui não tem saída ! É a minha casa.

Não se recordaria jamais se agradeceu a informação, voltou-se e desceu a passos largos, entre tosse, ânsia de vômito, medo. Oque entendia de residência acabara de ganhar um sentido mais amplo, sem telhado, sem portas, sem tantas coisas que ela sequer notava em seu próprio lar, e que faziam substancial falta naquele lugar. Estava invadindo a privacidade de alguém, porque em seu pavor egoísta achava que na rua tudo é público. Compreendeu também naquele instante que os rapazes estavam indo consumir drogas, e ela os seguia. Esta consciência a deixou perplexa. O mundo é muito mais do que sua existência urbana, industrial e familiar pode pressupor.

No semáforo perguntou a alguns motoristas, se iriam atravessar o tal viaduto, sucessão de nãos e de vidros fechados. Olhares assustados, olhares de desprezo. Até que duas senhoras, não sem antes negarem ter espaço disponível no banco de trás, permitirem sua entrada. Nesta rápida negociação, o semáforo abriu, muitas buzinas e palavrões acompanharam sua entrada no veículo. Por fim acabaram se sensibilizando com a moça estática no banco traseiro, e foram dialogando até se descobrirem vizinhas. Estava de volta ao seu mundo "real".

Nunca esquecerá o medo que sentiu, a solidão dentre uma multidão de pessoas. Nunca esquecerá o desprezo dos motoristas, e a sensação de desamparo. Nunca esquecerá o olhar assustado do homem, certamente estranhando a invasão de “sua casa”. Nunca esquecerá as senhoras igualmente assustadas com a intrusa bem vestida. Nunca esquecerá o valor de ter um lar para voltar.