Lembrar para esquecer

Os mais antigos naturalmente se lembram da festança brasileira por ocasião da conquista do tricampeonato mundial de futebol em 1970. Os brasileiros se deliciavam com o time canarinho nos gramados mexicanos, distribuindo o talento e a melhor arte do futebol... Uma seleção inesquecível... Naqueles tempos, Pelé, Tostão, Gérson... eram os ídolos nacionais. Este último passou à história do nosso futebol como o Canhotinha de ouro . E teve uma participação das mais importantes no jogo final contra a Itália.

Chegados ao Brasil, os craques, que não viviam nadando em dólares, protagonizaram comerciais. Afinal, não faltava quem quisesse associar produtos à imagem dos jogadores vitoriosos. Foi aí que o Canhota, infelizmente, acabou lançando contra o próprio gol. Como era atleta fumante, se viu estrelando o comercial de um cigarro, em que se descreviam as inúmeras “vantagens” do produto. O Canhotinha de Ouro dizia, feliz, que sempre levara vantagem e aconselhava o produto a quem quisesse também levar vantagem em tudo.

A partir daí, institucionalizou-se a “lei de Gérson”. Nos últimos anos, a imprensa, os políticos, os entrevistados, quando desejam criticar os nossos desvios de caráter, no sentido do lucro inescrupuloso, o fazem, muitas vezes, lembrando a lei do Canhota.

É evidente que a criatura não se afina ao criador. Gérson de Oliveira Nunes, se não foi o mais disciplinado dos atletas, certamente não transmitiu exemplos indignificantes. Atleta cerebral, inteligente, não é justo que ele tenha seu nome associado a uma lei que nos distingue de forma pejorativa.

Diga-se de passagem que, afinado com o espírito de coletividade que o futebol requer, Gérson se especializou em lançar, em servir aos companheiros. O Canhota deve ter marcado poucos gols, mas, com passes certeiros, presenteou goleadores no Flamengo, Botafogo, São Paulo, Fluminense e na Seleção Brasileira. Era a sua vocação.

Um dos critérios para sabermos se uma expressão existe é certamente consultar o dicionário. A nova edição do Aurélio e o Houaiss não fazem referência à “lei de Gérson”. Que santa omissão!

Vale lembrar que a citada lei anda mesmo em desuso na boca dos políticos. O atual presidente, salvo maior equívoco, não fez uma referência sequer à “lei de Gérson”. Amante do futebol, conhecedor das biografias que louvam esse esporte, Lula, generoso e sensível que é, deve ter atinado para a impropriedade.

Vive o Brasil um novo tempo, sobretudo um tempo de esperanças... É chegado o momento de revogar em nossos usos linguísticos essa lei, que nos denigre como nação e estigmatiza uma pessoa que não merece. Hoje, sabemos que o Canhota, além de comentarista esportivo, às vezes polêmico, quase sempre bem-humorado, está à frente de um projeto social em Niterói, visando, através do esporte, à inclusão social de jovens carentes. Soma-se ele a iniciativas meritórias de famosos ou anônimos por este Brasil afora.

Craque de ontem, comentarista de hoje, professor de futebol para crianças humildes... Lei de quem? Esqueçamos... E se aqui lembramos, foi somente para esquecer.

Publicado originalmente no jornal Tribuna de Minas, em 19/01/2003.