A MAGIA DOS CORDÉIS

A MAGIA DOS CORDÉIS

Ao mês de junho, certamente, reservam-se algumas de nossas mais concorridas e tradicionais festas populares. Atualmente, consagradas aos santos católicos Antônio (dia 13), João Batista (dia 24) e Pedro (dia 29) tiveram origem no período pré-gregoriano, como festas pagãs, a comemorar a fertilidade da terra às boas colheitas, à época, solstício de verão. Conhecidas como festas Joaninas, homenageavam a João Batista, primo de Jesus, que batizava em purificação à vinda do Salvador.

Asseveram os historiadores que o evento chegou ao Brasil pelas mãos dos portugueses, ainda no período colonial. Da fidalguia francesa recebemos a dança marcada: elitizada, com ares e vestes e olhares de nobreza e influenciou as típicas quadrilhas. A tradição de espocar fogos bordou o céu com cores da engenhosa pirotecnia chinesa. E a Península Ibérica brindou-nos com a dança de fitas, integrando, através da arte, a harmonia, a graça e a leveza no sarandeio e no sapateio de portugueses e espanhóis.

Essas contribuições, tão expressivas ao nosso substrato cultural, incorporaram-se às nossas raízes, forjando vertentes regionais, a permitir uma face totalmente brasileira com nuances que enriquecem a socialização, a assumir características próprias de cada rincão de nosso país. Destarte, não devemos olhar com os mesmos olhos, até porque a assimilação não ocorre por igual, à mesma temática vivenciada no Nordeste e no Sul.

O universo cultural que cerca e compõe as festas juninas é bem mais expressivo do que imaginamos. As comemorações não devem ser consideradas como mero encontros recreativos sem comprometimento sócio-educativo. Não podem ser vistas tão-somente pela ingestão de pipocas, pelo bigode com carvão ou pelo chapéu de palha. Vão além. Agregam campo fértil a pesquisas históricas e linguísticas, oportunizam a preservação de manifestações folclóricas, dão a conhecer nossas riquezas culinárias, estimulam mananciais econômicos, incitam fluxos turísticos, valorizam manifestações musicais, motivam a pena poética e fortalecem a alma melodiosa de nossos cantadores, dentre outras. Respeitados limites e pareceres, cremos que esse cabedal, em se considerando valores tantos, além de fonte de motivação econômica, pode e deve ser preservado como um caudal sócio-cultural.

E assim o sendo, bem que poderia fazer parte de nossos currículos escolares. Quem sabe, pela natureza estrutural, de pronto receberia guarida nos segmentos históricos, científicos, linguísticos e religiosos.

O mês de junho, em algumas regiões, permite expressivas colheitas de milho. Através de doces, bolos e salgados, comprova-se a relevância dessa primordial fonte alimentar. Bolo de milho, broa de milho, canjica, curau, cuscuz, milho cozido, milho verde, mingau de milho, pamonha, pipoca, suco de milho verde aguçam nosso apetite. Arrolam-se, também, arroz-doce, baba de moça, batata doce assada, biscoito de polvilho, bolo de amendoim, bolo de pinhão, bom-bocado, broa de fubá, cajuzinho, cocada, doce de abóbora, doce de batata doce, maria-mole, pão de batata, pastel junino, pé-de-moleque (pede, moleque), pinhão, quebra-queixo, quentão, quindim, rosquinhas de São João...

Desvincular a fogueira das festas juninas é inconcebível. O fogo sempre foi tido como um dos símbolos de poder e purificação. Duas explicações justificam a origem: comemoração, no solo europeu, ao solstício de verão e uma lenda católica em que Isabel, grávida de João Baptista, comunicaria a Maria, sua prima, a boa nova. À guisa de curiosidade, permitam-nos lembrar que a base da fogueira de Santo Antônio, por convenção, é quadrada; a de São João Baptista, redonda e a de São Pedro, quase cônica, em formato de pirâmide.

Afloram-se lembranças e deixamo-nos viajar em recordações saudosistas. Dois meses antes começávamos os preparativos. Centenas de bandeirinhas: retângulos com pontas triangulares, nas cores amarela, azul, branca, laranja, verde, cortadas em papel de seda, com goma caseira, eram coladas em fios de barbante. Possibilitavam, ao longo da confecção, o gosto pela arte, a harmonização cromática, o desenvolvimento manual, a socialização, a descontração. Cada um queria fazer o mais bonito, o melhor. De algum tempo, distribuidoras de milho para pipoca entregam às instituições bandeirinhas em plástico. Todas do mesmo tamanho, translúcidas, sem erro, sem a mão humana, não voejam ao sabor do vento, sem calor, mecânicas, frias. Por que fazer se podemos ganhar? Talvez seja esse o argumento de quem é acomodado ou sem tempo a investir no ser humano. Conseguiram subtrair as tranças coloridas de nosso arraial.

Nossos sonhos e memórias embalam-se na brasilidade de nossos ritmos e nos versos de Balão vai sumindo, Cai, cai, balão, Capelinha de Melão, Chegou a hora da fogueira, Era noite de São João, Festa junina, Festa na roça, Isso é lá com Santo Antônio, Noites de junho, Olha pro céu, meu amor, Pula a fogueira, O sanfoneiro só tocava isso, Sonhos de papel... Nosso vocabulário matizava-se com nuances de arraial, balão, capela, casamento, chapéu de palha, festa, fogueira, folguedo, pinhão, quermesse, roça, sanfona, sonhos, terreiro, tranças, ao lado de dezenas de palavras identificadas com a magia desse universo. Naturalmente novas composições agregaram-se e o farão sucessivamente. Desde que valorizem a temática, devem ser prestigiadas. O saber não pode ser estanque. Contudo, não nos parece apropriada, em nome da modernidade, a divulgação de mensagens discordes do contexto, nacionais, menos ainda vindas de outras bandas,

No Sul, com frequência, as chuvas impedem a realização das festas, ao ar livre, no mês de junho. Os educandários, em particular, também considerando o término do primeiro semestre, procedem à comemoração no mês de julho. O comportamento tem levado a crer-se que o correto seja ‘festa julina/julhina’. Uma análise superficial revela que o ‘junina’, bem mais que o mês, envolve a natureza operacional. Se realizada em agosto ou setembro, desde que mantenha as características que a consagraram, continuam ‘festas juninas’.

Moedas e pequenas economias, conquistadas ao longo de três meses, carimbavam nosso passaporte a jocosas brincadeiras. Dentre muitas, acertando argolas, barraca dos beijos, bingo, bola ao alvo, correio elegante, corrida com ovo na colher, corrida do saco, corrida dos pés amarrados, dança das cadeiras, derrubando latas, pescaria...

Ao contrário de muitas comemorações que não resistiram aos ventos da modernidade, em especial ao advento de fluxos tecnológicos, com nuances virtuais, as festas juninas, em que pesem lastimáveis mutilações, retornam a cada ano, graças ao empenho e idealismo de educadores, líderes comunitários e a tantos que se inebriam com a mística de cordéis embandeirados.

Ainda que tentadas à incredulidade, moçoilas casamenteiras continuarão a colocar duas agulhas numa bacia com água. Uma vez juntas, é uma indicação de que haverá casamento. Algumas o farão, pondo sob o travesseiro uma flor bem viçosa. Se na manhã seguinte a flor ainda estiver bonita, haverá casamento em breve. Outras irão por um pouco de clara de ovo em um copo com água. No dia seguinte, havendo um desenho semelhante a uma igreja indica casamento; parecido com um navio, uma viagem, próxima. Moças que desejam casar furtarão a Santo Antônio o Menino Jesus que traz no braço, e o devolverão, sob segredo, quando noivas. Outras tantas amarrarão o Santo ou o colocarão de cabeça para baixo. Igrejas católicas distribuirão, dia 13 de junho, o “pãozinho de Santo Antônio”, a ser consumido por mulheres que queiram casar. E segundo a tradição, deverá ser colocado junto aos outros mantimentos, para que nunca ocorra a falta.

No ano vindouro, esperamos renovar-nos na cultura dos folguedos e alegrias juninas. E ainda que nos faltem pernas a pular as fogueiras; embora a camisa quadriculada, o chapéu de palha, e as calças com remendos não mais existam; mesmo que o bigode e o cavanhaque de carvão tenham dado lugar a pelos brancos; por mais que nos falte par a danças na quadrilha, mesmo assim desejo ir. Desta vez aspiro a ser testemunha no casamento na roça e, se não ficar detido na cadeia, extasiar-me ante a magia dos cordéis.

Jorge Moraes – setembro de 2016 – jorgemoraes_pel@hotmail.com