Meia dúzia de passos

É incrível como a Literatura tem o poder de nos levar a experiências inéditas nos episódios mais inusitados de nossa vida. Foi ela quem me trouxe hoje ao prédio da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo em Campinas – no comecinho da Alberto Sarmento, ali perto da Avenida Lix da Cunha: consegui a publicação do meu primeiro livro de poesias, mas, por ser independente, precisei cadastrar-me no órgão público como Microempreendedor Individual para poder emitir notas fiscais às livrarias que se interessaram pela obra.

Nunca me importo de pagar estacionamento, mas hoje não sei por que cargas d’água resolvi economizar e procurar um local na via pública onde pudesse estacionar sem pagar. Certa estupidez geográfica, que sempre me levou para longe na vida, dirigiu-me para o quarteirão do estacionamento da Caprioli atrás de um posto Shell na Rua da Constituição, um pouco mais distante do que o estacionamento: meia dúzia de passos a menos, meia dúzia a mais...

Chegando ao meu destino, enquanto pegava uma senha de atendimento, SIA – 1638, pensava comigo mesmo sobre como as instituições públicas são demoradas e como tudo fica pronto só depois de dois, três dias úteis, quando não mais... Provavelmente seria esse o prazo para que eu tivesse o tal cadastro para emitir a nota e enviar os livros. Sentei-me em uma das cadeiras e ali aguardei ser chamado. Uma moça chegou depois, pegou outra senha e foi atendida primeiro, mas não sou de intrigar à toa (exceto quando outras irritações já se somaram à nova), portanto, preferi filosofar sobre os porquês de a senha WIS – 0077 ser chamada mais rápido: doadora de sangue? Retorno em atendimento já iniciado? Erro no sistema? Vai saber... Estava já filosófico sobre a decisão de parar o carro na rua e meia dúzia de minutos a menos, meia dúzia a mais...

Até que havia bastantes funcionários em atendimento nas mesas esta tarde e não demorou para que eu fosse chamado. Curiosamente a minha atendente era a única que parecia mais idosa, daquelas que já atingiram a idade para a aposentadoria, mas decidem continuar trabalhando; talvez tivesse a idade da minha mãe, meia dúzia de anos a menos, meia dúzia a mais... e lá no âmago do meu ser brasileirinho eu pensei que talvez sendo ela mais “senhorinha” conseguisse angariar sua simpatia para acelerar meu processo - mas a ideia não passou de pensamento; sou contra quaisquer jeitinhos e procuro tratar todos com igual e natural gentileza e deixar as consequências transcorrerem conforme transcorrem para todos os demais.

Sorri, cumprimentei, sentei-me, perguntei-lhe o nome, expliquei-lhe a situação, entreguei-lhe os documentos. Quando ela pegou minha identidade, atentou para a data de nascimento:

- Puxa! Você é do mesmo ano que meu filho: 1977. E o mesmo mês Dezembro! - o brasileirinho do meu âmago remexeu-se mais uma vez e outra vez mantive o juízo. Afinal, são apenas doze os meses do ano e não são raras coincidências como essa com meia dúzia de dias a menos, meia dúzia a mais... – Ele morreu quando tinha quinze anos, continuou ela: - era alto, magro, provavelmente seria parecido com você... eu sinto tanta saudade dele! E eu nunca mais poderei vê-lo de novo – concluiu Sônia a altercar o olhar nos números dos documentos e em mim.

Agora, a história mudava completamente. O interesse por aquela mulher distanciava-se ainda mais por questões de prazos e livros e burocracias e se aproximava pela única coisa que nos importa, que nos difere de quase todos os outros seres vivos do planeta, que nascem, crescem, tem filhos e por vezes os perdem antes que finalmente morram. Quanta emoção naquelas frases: “eu sinto tanta saudade dele” e “nunca mais poderei vê-lo de novo” – que saudade pérfida é essa a causada pela morte! Uma saudade mesquinha, que não se mata, ao contrário de quase todas as outras saudades como a de amor, romântica, por vezes até gostosa, inflamadora das paixões; a saudade de casa ou mesmo a saudade da infância que também não volta, mas reside no curso natural da vida: tê-la vivido para poder se lembrar. Mas, a da morte não. A morte é uma luz que se apaga definitivamente em nossa existência, especialmente porque as pessoas se vão de súbito e sem se despedir. É uma luz que nunca mais se acenderá e naquele momento tanto ela quanto eu sentíamos isso.

- Nossa! E como ele morreu? Atropelado? – foram essas as exatas palavras que saíram da minha boca. E vieram certeiras sem a intervenção do córtex pré-frontal. Como o trem que um dia percorreu os trilhos da ferrovia que partem da Estação Cultura e ainda cruzam as ruas daquelas e de tantas outras redondezas campineiras.

- Foi! Atropelado... Ali perto da Rodoviária Velha na Andrade Neves. – confirmou ela dividida entre o semi-espanto com o meu palpite inequívoco e a conferência dos números e inscrições que ela confirmava também locomotivamente.

Fiquei um pouco atordoado com meu acerto e cheguei até a mencionar na sequência, mas não nos ativemos a esse detalhe porque éramos agora cúmplices de uma mesma emoção. Vez por outra, nossos olhos se cruzavam por frações de segundo e, por trás das lentes que por razões diferentes usávamos, por razões semelhantes estavam umedecidos. E embora eu nunca tivesse experimentado um sentimento de perda daquela magnitude, eu sentia, na plenitude da minha alma, indelével compaixão por aquela mulher.

- Como ele se chamava?

- William...

Um breve silêncio seguiu a revelação, mas uma tarde de pensamentos preencheu nossos corações. E pela intensidade de nossa conexão, ousaria dizer que compartilhávamos de muitos deles. Obviamente não sei como William era, onde estudara, se um dia cruzei com ele pelas ruas e festas adolescentes de Campinas... Logo, não poderia compartilhar das lembranças que ela acessava enquanto se preparava para finalizar meu atendimento. Mas há minúcias acerca de acontecimentos trágicos que envenenam a mente de quem sofre, de quem fica e naquele momento minha simpatia emocional por Sônia era tanta, que refleti sobre elas: imaginei William na saída da escola traçando usuais caminhos pelas conhecidas ruas daquele arrabalde os quais desempenhava automaticamente todos os dias. Perguntei-me que eventos poderiam ter acontecido na mente do garoto para que ele saísse de sua rotina, parasse em uma vitrine para olhar um tênis da hora ou uma vendedora atraente; ou decidisse fazer outro caminho que lhe garantisse meia dúzia de passos a menos ou a mais que o poupassem do fatídico encontro na Andrade Neves, próximo à Rodoviária Velha, naquele exato momento da existência a partir do qual deixaria tantas saudades à sua mãe.

De volta à emissão das notas fiscais, Sônia terminou de imprimir meu cadastro, colheu minha assinatura e entregou-me um papel:

- Geralmente essa senha fica pronta em cinco dias úteis, mas hoje preferi adiantá-la para você. Fica entre nós. Pela lembrança do William.

Agradeci quase envergonhado dos pensamentos anteriores, mesquinhos, restritos a um aspirante a vendedor de livro independente e à burocracia de uma instituição pública. Não fosse a honestidade das minhas emoções, da minha compaixão, envergonhar-me-ia. Agradeci mais uma vez e, antes de sair, disse-lhe que gostaria muito de ter conhecido seu filho.

O caminho de volta para o carro pareceu-me tão mais longo! A vontade de chorar escondida por trás dos óculos e sob a hirsuta barba acompanhou-me até o carro, desceu comigo as escadarias da Parada Alberto Sarmento e seguiu-me pela estreita calçada à beira da Lix da Cunha. Quantos carros e ônibus perderam o controle da direção e descumpriram seus trajetos meia dúzia de metros a menos, meia dúzia a mais e me atropelaram naqueles pensamentos até alcançar o posto Shell em cuja rua de trás meu carro me esperava? Como era forte o desejo de fazer algo pelo William para a Sônia – podia ao menos tê-la abraçado; mas é colossal a impotência humana diante dos caminhos escolhidos, diante da morte, diante do tempo.

Então, ao invés de seguir para casa, mudei o trajeto e minha rotina uma vez mais no dia. Com a vontade de chorar no passageiro, meia dúzia de minutos a menos, meia dúzia a mais, rumei para onde ficava a Rodoviária Velha, estacionei na esquina de dois Barões ao lado de onde os viajantes desciam para o embarque. Saí do carro. Corri pela calçada na direção da Andrade Neves. As lágrimas já escapuliam aos olhos e molhavam o rosto imberbe de garoto de quinze anos, o ano, agora, deve ser 1993 e minha mãe, Sônia, espera a minha chegada. Corro como um comboio de histórias a viver, de saudades a matar. Corro como a estação vista do ser vagão. E, quando falta meia dúzia de passos para chegar à avenida, eu paro e mudo, por um segundo, o rumo do tempo e a história de William no mundo.

Saulo Pessato – 03/08/2016