A GRANDE DOR DAS COISAS QUE SE PERDERAM

Um dia não havia mais nada do que houvera antes. Às alegrias e sorrisos de rostos queridos, sucederam-se tristezas das ausências que se fizeram; e os dias não tinham mais a doce magia de tempos pretéritos.

As velhas casas que antes regurgitavam de vida, agora são purgatório de sombras errantes que se contorcem em danças fantasmagóricas e ameaçam se precipitar no abismo de uma saudade que parece se comprazer com sua própria saudade. As ruas por onde transitavam as rijas gentes de enxada ao ombro em direção aos seus campos, que graças ao seu árduo e persistente trabalho formavam geometrias caprichosas e verdejantes hoje estão desertas tomadas pelo silêncio pétreo das coisas inanimadas.

Até as aves que em grande número nos enchiam de ternura com seus gorjeios entre as ramadas das árvores, parece que emudeceram, ou mudaram de lugar. Não se ouvem mais os sons bárbaros de carros de bois, pejados, descendo pelos íngremes e tortuosos caminhos, rasgando entranhas que antes rescendiam a perfume dos pinheiros bravos, e a rosmaninho, porque até os pinheiros deram lugar a uma espécie fria e alienígena que tanto nos enfastia a visão. Os velhos carros de bois, valioso meio de transporte de bens e frutos do lavrador daqueles tempos, jazem sob velhos alpendres cujos telhados já cederam, uns, outros seguem o mesmo destino vergando ao peso do tempo e em sua maioria já nem essas ruínas, como testemunho para os mais novos, existem mais.

O pequeno e gracioso tentilhão, e a graciosa alvéloa sempre inquieta e cheia de leveza que costumava fazer do cume da velha casa de muitas vidas vividas, seu posto de observação para o mergulho certeiro sobre os insetos voadores que cruzassem aqueles espaços, também essas graciosas aves parece que sumiram. O mesmo aconteceu com o arisco e meigo pisco de papo avermelhado que também desse telhado fazia o seu miradouro predileto. Já não mais povoará os sonhos do gato borralheiro que dormitava no aconchego do calor da lareira sonhando com lauta refeição que jamais haveria de acontecer.

O rio de águas cristalinas, de tantas brincadeiras da canalha miúda que sob o sol de rachar - consumição das pobres mães - parece mais triste na voz de sua melopeia, ao lamber as pedras da represa que os muito velhos um dia construíram para levar a água às courelas sempre verdejantes que essas águas saciavam, e movimentavam o velho moinho comunitário; hoje apenas seguem seu destino rumo ao mar que o mesmo é dizer destino sem destino.

Ah! Como dói o silêncio não consentido. Como faz falta um sorriso emoldurando aquela janela pendurada no tempo, um olhar enternecido para adocicar a vida. Gestos, pedaço de tempo lembrado com doçura, também com dor - mas, vivido.

E ao pensar que tudo isto aconteceu em apenas escassas décadas, aumenta a mágoa em nós. E um sentimento de impotência nos invade sem compaixão. As recordações de um tempo pretérito perfeito são mais vivas quando se vive longe do ninho que um dia abandonamos convictos de nossa imponderabilidade. E ao passar dos anos, acontece um vazio, uma espécie de bolha que se torna imune ao tempo. E não há lenitivo para a saudade que, solerte nos invade, e acusa de um pecado que intimamente desejaríamos jamais ter cometido.

Não há palavras mais belas na nossa doce língua portuguesa do que as proferidas pelo grande e incomparável Camões há aproximadamente quinhentos anos, que melhor expressem semelhantes sentimentos: “A grande dor das coisas que passaram”. Ou ficar com as palavras já antes refletidas e proferidas por este escriba, num momento de semelhantes lucubrações: Hoje pendurei a tristeza numa vírgula, dobrei a esquina da alma e socorri uma lágrima que teimava em se precipitar no abismo do porquê

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 26/10/2016
Reeditado em 29/12/2016
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