Permanente...

Foi no início dos anos setenta, quando ele, menino cheio de vida, e de sonhos, no esplendor de seus doze anos (pouco mais, pouco menos), já ganhava mesada do pai ("semanada", mais precisamente). Não era muito, mas dava pro básico (cinema aos domingos e dois ou três lanches durante a semana, nada além disso). Hoje, o adulto no qual se transformou aquele menino de tempos tão queridos tem a precisa compreensão de que a atitude de seu pai era muito mais educativa do que motivada por qualquer outra razão, já que nada lhe faltava, ainda que na medida exata de suas necessidades, no que diz respeito ao plano material - sem exageros ou qualquer tipo de ostentação. O adulto de hoje compreende também - tanto quanto se emociona com - a postura de seu grande professor em relação ao episódio a seguir relembrado.

Certo domingo lá estava ele - o menino cheio de vida e de sonhos - na fila do Cine Estrela (quanta saudade!...) para comprar o ingresso da matinê das 13:30h (compromisso sagrado na agenda do pré-adolescente que já se encantava com os primeiros flertes, mais platônicos que de fato - ao contrário do que se vê escancarado nos dias de hoje). Na fila, cinco ou seis garotos à sua frente. Eis que pára ao lado da calçada, um pouco mais adiante, a Veraneio (sim, a velha e boa Veraneio...) verde oliva do comandante do quartel (na cidadezinha do interior em que morava, havia - ainda há - um batalhão do exército), e dela desce o filho do comandante, de mesma idade que ele. Ao invés de se dirigir ao final da fila de compra do ingresso, o privilegiado filho do comandante do quartel passa direto pela roleta e entra no cinema.

Aquela cena chamou-lhe a atenção e tão logo passou pela porta do cinema foi ter com o sorridente passageiro da Veraneio verde oliva:

- Ué, você comprou o ingresso antes?

- Que ingresso, cara, vai me dizer que você compra ingresso! Seu pai não é o Juiz de Direito da cidade?

- É sim, mas o que isso tem a ver?!...

Ele meteu a mão no bolso da camisa e tirou uma carteirinha (conhecida como "permanente").

- Você não tem uma dessas?!...

Não seria necessário dizer que naquela tarde o menino cheio de vida e, agora mais ainda, de sonhos, não viu quase nada do filme (flertes, idem...), pois seu pensamento colou na história da tal "permanente" e ele não via a hora de chegar em casa pra falar com o pai a respeito (afinal - raciocinou sem muito esforço - sua mesada teria um bom aumento, sem que seu pai precisasse desembolsar mais por isso).

Final da matinê, saiu do cinema e foi correndo pra casa. Ao chegar, encontrou seu pai lendo um livro, como sempre fazia aos domingos (na verdade, ele lia sempre, pois amava a leitura).

- Como foi o filme, meu filho?

- Foi bom... Papai, o senhor sabe o que é permanente?

- Bem, ao que você está se referindo? A algo que não é passageiro ou temporário?

- Não, eu me refiro àquela carteirinha...

- Sim, filho, eu sei do que você está falando.

- O senhor poderia tirar uma pra mim, então...

- Sente-se, meu filho, vamos conversar um pouco. Eu sei que esse é um direito que você tem por ser filho de um Juiz de Direito, mas quero lhe dizer que na vida há certos direitos que devemos simplesmente ignorar, por serem, digamos, discriminatórios, ainda que legítimos. E esse, no meu entendimento, é um desses casos.

- Mas, papai, o filho do comandante do quartel tem uma, o do prefeito também. Se é um direito, legítimo, que mal haveria em exercê-lo?

- Quantas crianças têm essa carteirinha, meu filho? Penso que a maioria não tem...

- É, vendo por esse lado, é verdade.

- Filho, veja bem, o fato de seu pai ser um Juiz de Direito não torna você diferente das outras crianças. Elas não entram na fila pra comprar o ingresso do cinema? Então você também tem de entrar, pois você é exatamente como elas. Você apenas, circunstancialmente, tem um pai que é Juiz.

- Mas o filho do comandante tem uma permanente, porque o pai dele tem esse direito...

- Bem, meu filho, isso é com ele e com o pai dele. Não quero e nem posso censurá-los, mas entenda que eu penso de outro modo, e gostaria que você também pensasse assim. E fique tranquilo, pois ao estabelecer o valor de sua mesada levei em consideração o preço do ingresso do cinema.

...

(a você, meu pai, minha eterna gratidão, por tudo o que me ensinou nesta vida...)