Sentir falta e sentir saudade – Uma história real para o Dia dos Pais

Publicado em 08/08/2007, editado e revisado em 07/08/2014.

Aprendi, talvez, da pior forma possível que o destino não perdoa criança, poeta e nem palhaço. Aprendi que se algo tem que acontecer, vai acontecer mesmo.

E numa sexta-feira dessas que antecedem o Dia dos Pais, eu estava mais ansioso com um presente meu que iria chegar do que com o que eu daria ao meu pai no domingo.

Na época, trabalhava em uma drogaria de um conhecido farmacêutico da cidade, hoje fora do ramo, assim como eu (atualização em junho de 2014: o farmacêutico faleceu neste mês).

Há quem diga que o primeiro patrão é pra vida toda. Uma vez, o velho japonês do bar, saudoso professor de cabelos grisalhos, cutucou-me durante um de nossos papos, e com seu olhar matreiro lançou: “O primeiro patrão é o que fica!”.

Ele estava certo. O que aquele homem me ensinou é o que uso até hoje. Não foram técnicas de como conquistar clientes, vender produtos, gerar relatórios financeiros e tudo mais o que o mercado nos cobra.

Com ele eu aprendi, sim, muita coisa relacionada a tudo isso; mas a maior lição foi sobre a ética e moral profissional. Foi isso que aprendi e guardei comigo.

E naquela sexta-feira, dia 8 de agosto de 1997, eu telefonava pra casa de hora em hora, para saber se os Correios já haviam entregado minha encomenda. Liguei o dia todo.

Era uma coisa que eu tinha comprado com meu próprio dinheiro, e agora estava endividado por dois longos meses. Porque quando se tem quinze anos na década de 90 e assume uma dívida, a coisa aperta de verdade.

Meu pai era funcionário público. Daqueles bem dedicados. E quando digo dedicado, também quero dizer que era um homem que além de trabalhar a semana toda, no sábado ainda arrumava algo pra fazer e ganhar um extra. Muitas vezes passava somente os domingos em casa. De certa forma acho que herdei seu vicio em trabalho. O mesmo que não o levou à riqueza.

Mas, graças a seus esforços, em casa nunca faltou nada: nem comida, nem roupa, nem carinho. Uma casa normal, claro, onde os pais discutem às vezes, os irmãos mais velhos também. Geralmente os irmãos não ligam, mas o caçula de quinze anos morre de medo e tudo o que faz é rezar pra Deus e pedir pra que aquilo tudo acabe logo. E sempre dava certo.

O fato é que eu continuei telefonando pra casa durante a tarde, em busca de novidades. Antes de ir embora, por volta das cinco da tarde, resolvi dar um último telefonema. Minhas esperanças já começavam a se esgotar e temia ter de passar mais um fim de semana sem o que esperava há quase um mês.

Mas desta vez foi diferente. Minha mãe estava diferente. Imediatamente eu soube que havia algo errado: “Mãe, por que a senhora ‘tá chorando?”.

Lembro-me que mal desliguei o telefone, apavorado, meu patrão, que estava ausente chegou. Disse a ele que estava com problemas em casa e pedi para ir embora. Eu não entendia o motivo, mas durante o percurso, perto de um quilômetro, de bicicleta, encontrei algumas pessoas – amigos, conhecidos, amigos da família – que acenavam ou que tentavam me parar, parecia que queriam dizer algo.

Havia algo muito errado acontecendo e parece que naquele momento o único que não sabia de nada era eu. Quando dobrei a esquina de casa, tive a certeza de que o que estava por vir não era nem um pouco legal.

Já havia visto a casa de alguns amigos daquele jeito. É tradicional, quase uma regra. Ademais, uma das maiores lembranças da minha infância é sobre uma explosão na rua da minha casa, em uma casa, onde apenas uma pessoa sobreviveu. E a cena só não era idêntica pela destruição, mas a aglomeração de pessoas...

Parei a bicicleta do outro lado da rua e vi as luzes acesas, a casa aberta. Pessoas nas calçadas. Na sala, os vizinhos falavam, lamentavam e traziam chá. Havia carros nas imediações, reconheci alguns – tios, primos, amigos.

Larguei a bicicleta no chão e recebi – indiretamente – a notícia de uma vizinha, que saiu do quintal da minha casa chorando: “O filho também foi, o filho também, meu Deus!”.

Eu sabia que agora era chegada a hora. O que eu tanto temia havia chegado. Não sabia quem, nem como, nem onde. Mas sabia que algo muito ruim havia acontecido. Subi a escadaria correndo, atropelando quem estava em minha frente e tentou me segurar.

Na sala, a primeira pessoa que me olhou foi minha mãe, com o semblante mais triste que já vi em minha vida, e não vou esquecer, nem que um dia eu tenha noventa anos. Recebi a notícia e pensei: “Ela não vai agüentar...”.

No domingo, 10 de agosto de 1997, eu não tinha mais pai. E o irmão ‘do meio’ agora também tinha mudado de posição: era o mais velho. Os jornais noticiavam a tragédia do ano. Um acidente envolvendo um conhecido funcionário da Prefeitura Municipal e seu filho mais velho, do qual só sobreviveu o motorista do caminhão atingido pelo carro que capotou do outro lado da pista.

O tempo passa e essas coisas acontecem em todo momento. Penso que não deveria ser assim, mas é. E, por incrível que possa parecer, a dor acaba amenizada. Desde aquele fato, o Dia dos Pais para mim é Dia das Mães e de saudade.

Não me sinto triste por não poder comemorar o Dia dos Pais abraçando ‘meu velho’. Sinto-me duplamente feliz por poder abraçar uma mulher que há tantos anos é mãe e pai ao mesmo tempo, e continuando o que meu pai e meu irmão ‘mais velho’ me ensinavam, fez de mim um homem de bom coração, de boa índole, de boa educação e ciente de tudo o que lhes devo. E agora é bem diferente, pois também sou pai.

Na segunda-feira minha encomenda chegou. Nos dias que se seguiram, além do trabalho e da escola, a minha única distração era capturar formigas e pequenos insetos para analisá-los em meu tão esperado microscópio. Na verdade, uma imitação fajuta e barata do aparelho científico, fabricado em algum país asiático, mas que teve uma importância enorme em determinado momento de minha vida.

Hoje, quando me recordo de toda a movimentação, lembro-me das pessoas tentando me parar na rua, e me lembro do olhar do meu patrão quando lhe disse que precisava ir embora. Todos já sabiam. O acidente aconteceu na rodovia que passa pelo bairro, a notícia correu rápido.

Na semana seguinte, por várias vezes eu não me contive em pleno trabalho. Tentava esconder as lágrimas, mas nem sempre era capaz. Numa dessas, ele me disse que a saudade do momento, a saudade-recente não era a pior parte.

Explicou-me que o mais difícil seria depois de alguns anos, quando a saudade batesse mais forte. E eu aprendi mais uma coisa: existe muita diferença entre o ‘sentir saudade’ e o ‘sentir falta’. E sentir falta, meus amigos, é bem pior do que a romântica, às vezes sofrida, mas necessária saudade. É sentir a falta de alguém quando se faz uma coisa diferente, ou quando se aprende algo.

É sentir falta de alguém quando se conquista algo, ou apenas quando queremos ficar sentados na calçada, conversando. É sentir falta de poder contar o quanto aprendeu, o quanto cresceu, o que fez, o que sentiu. E não poder. Sentir falta machuca muito mais que sentir saudade. Feliz Dia dos Pais a todos - principalmente a todas às Mães-Pais.

Fernando Pineccio é repórter em jornal impresso e editor web.

Pinnas
Enviado por Pinnas em 08/08/2007
Reeditado em 07/08/2014
Código do texto: T598975
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