As coisas estão mudando

Sexta-feira, 29 de setembro, último dia útil da semana. Mais três e nos despediremos de 2017 contabilizando acertos, encontros, perdas, vitórias. Por enquanto temas de outras histórias. Acordei cedo e sai atrasado. Uma espiadinha na Internet para checar informações e também felicitar os aniversariantes do mês, a prima Denise está soprando velinhas – domingo vai ter bolo e churrasco em família no Jardim Acácio – e minutos quase hora passaram. Um link puxa outro igual canto de galos.

A sorte me abençoou com lotação a caminho. No terminal Cidade Tiradentes, a benção se repetiu no ônibus chegando. Em Guaianases, um trem apinhado estava prestes a partir. A favor da continuidade, estou lendo – Lima Barreto: Diário do Hospício e Cemitério dos Vivos; e Amós Oz: De Amor e Trevas – optei pelo próximo. Neste horário até o assento especial é concorrido. Sempre aparecem os mais idosos, grávidas, recém-nascidos. Dinossauros ainda existem; como sou um cavalheiro que ainda se preza por ser, cedo. Nada contra ler em pé; vista cansada e os óculos multifocal embaralham. Coisas da idade. Anos atrás não faria diferença. Se Allan da Rosa leu “A Canção de Salomon” na calçada iluminado pela lua (babei de inveja); li “Filho Nativo” e “Seara Vermelha” nas escadas dos ônibus em horário de pico. Livro bom tem dessas coisas. Nos sequestra e coitado da pele de quem pagar o resgate!

Dias passados, numa reunião de amigos e empreendedores, orquestrada pela produtora Ana Paula Nascimento, a Preta, e seu namorido Israel, fui apresentado como andarilho. Recorri ao slogan do “Jornada nas Estrelas”, e disse estar usufruindo os benefícios dos meus sessenta anos com passe livre no transporte e locais públicos. Assim, desde 2015 estou me proporcionando o direito de ir onde nunca estive.

Nesta manhã meu ponto inicial era masterclass de piano como ouvinte na Sala São Paulo. Tomei gosto pela música instrumental. Influencia do choro, jazz, soul, bossa nova... Sou habitué dos concertos e shows lá realizados. Mesmo que me remetam “A Descoberta do Frio” e “Homem Invisível”! Seja com ingresso ganho em promoções ou garimpado na cara de peroba. Dependendo do artista, o valor do ingresso, por si já é excludente. Tem os cortesia e tem vez que sobra doação. Como o não é garantido, resta tentar um sim.

Ando menos dependente de integração; estou é carente de informação que propicie formações. Se houvesse escolas de música e salas de concerto bem aparelhadas, com atividades e programação semelhantes na região leste, inclusive no próprio bairro, aborrecimentos e deslocamentos seriam minimizados. Se Heliópolis e Paraisópolis podem, por que nós também não podemos? Isto me soa proposital para inibir independências. Música tem também seu caráter pensante e político. Bob Marley, Chiquinha Gonzaga, Fela Kuti, Beethoven, Stravinsky que nos digam. Do que me serve ter pão e não saber fazer teto ou ter teto e não saber fazer pão? Por que não podemos aprender a fazer ambos para ter os dois? Segundo o colunista Ricardo Alexino Ferreira: “Discriminação é falta de conhecimento”.

A passo largo da estação da Luz cobri o trecho. Uma recepcionista me deu um crachá e apenas indagou se me inscrevi pela Internet? Não vi lista de presença no balcão. Acenei com o polegar e a identidade em punho. No saguão, me confundi. Ainda não dei rolê no prédio, outrora anexo da estação Júlio Prestes. Ótimo seria alguém afinado e disposto a vir! Quem não está familiarizado tende a dormir ou passa o tempo contando as horas. Talvez isto explique as coreografias, acompanhando as cantorias em rap, rock, samba, sertanejo, nas igrejas do bairro. Os cultos na avenida dos Metalúrgicos, por exemplo, parecem sinfonias gospel. Será que tem alguma tocando afoxé ou funk pancadão?

Deve ter sido tudo providencial. Próximo ao elevador quando o descobri, um patrício veio apressado e carregando um enorme instrumento. Não me contive ao cumprimentá-lo em tom explicito de surpresa. Um irmão tocando tuba na Sala São Paulo? – comentei. As coisas estão mudando. Ele respondeu. Lembrei do Pedro Ricardo, iniciado na trompa, um dos filhos do casal Ana Matilde e Ricardo Miranda, meus vizinhos lá no 81. Posso fazer uma foto? Sim. Concedeu com naturalidade. Sabe quando você encontra Fred Wesley, Maceo Parker, Raul de Souza, pede um autógrafo e gentis e sem reservas, eles te atendem? Meu sonho de consumo é poder um dia fotografar os patrícios da OSESP. São poucos e raros como gotas de café e chocolate em mares de leite. À distância, o trombonista Darrin Coleman Milling tem sido um dos meus alvos. A primeira vez que o vi na orquestra quase dobrei os joelhos.

Fiz alguns cliques em busca da melhor luz e ângulo, e ele posou como quem estava perante um reconhecido fotojornalista. Antes que me esquecesse, isto sempre acontece, perguntei seu nome. Bruno. Ele ligou um smartphone, perguntou o meu e se eu estou em alguma rede social? Soletrei meu primeiro nome para melhor entendimento. Vou te adicionar. Agradeci. Subimos. Desejei-lhe bom trabalho. Ele ficou no primeiro e eu fui para o segundo andar.

No corredor um patrício me indicou a sala de piano, cuja porta emperrada foi aberta por outro patrício, cujo nome também não perguntei – sonhamos com o céu e esquecemos da terra – se empenhou ao máximo para fazer o mínimo ruído possível. Com sorriso amarelo pelo importuno, adentrei. Não havia nenhum irmão ou irmã na fila de audição nem na platéia, no registro fotográfico e na tradução em auxilio ao pianista e maestro Jean-Efflam Bavouzet, condutor da masterclass. No centro da sala, um Yamaha de cauda preto, imperava tão majestoso e desafiador quanto uma Ferrari... Pensei no Paulo Rachmaninov Siqueira. Um Chopin de ébano, dedicado a composição neste instrumento. Ano passado, recebi dele “Variações de Parabéns a Você” em dois pianos. Emocionado, chorei. Elevei o pensamento aos antepassados e aos ausentes, agradecendo por estar ali. Lembrei do Bruno e seu dito. Esqueci de perguntar onde ele toca? Torci pelas fotos. Seja qual for o resultado ganhei o dia!...

Oubí Inaê Kibuko, Cidade Tiradentes, 30/09/2017.