Samsara

Acordara sobressaltado e transpirando. Havia sido difícil se libertar dos pesadelos recorrentes com os quais sonhava quase todas as noites. Olhou em volta, seus olhos se adaptando à escuridão de seu quarto, vislumbrou a porta entreaberta.

Sentou-se a beirada da cama, controlando a respiração antes ofegante, e procurou em volta pelo par de tênis surrado. Calçou e se dirigiu a cozinha. Estava a casa vazia. Olhou o relógio do velho microondas, 00:30 de uma sexta-feira fria.

Abriu o armário em busca da caixa de remédios, sacou uma cartela de analgésicos (único remédio que lhe amenizava as terríveis dores de dente). Ingeriu duas pastilhas que deslizaram até seu estômago, embaladas por um gole de saquê, que jazia esquecido no fundo de sua geladeira semivazia. Estava desempregado havia mais de dois meses. Havia trabalhado em quase todas das poucas pequenas indústrias de sua cidade, que era do tipo “cidade-dormitório”, perto da capital do estado, porém longe de ter um desenvolvimento significativo.

Costumava dizer que essas tais indústrias te contratavam, te exploravam em caráter de “experiência” e depois te davam um kit; “kit-fóde”. Rua de novo.

Quando jovem freqüentava a igreja por obrigação, e constrangia seus pais quando questionava publicamente o padre local com as mais cretinas perguntas sobre a existência de Deus (da qual sempre duvidou). Com 14 anos leu Nietzsche pela primeira vez, e decidiu que já era hora de matar aquele velho senhor barbudo, que desde sempre controlara sua vida, e que havia levado embora a maioria das pessoas com as quais chegou a se importar, inclusive seu primeiro e único amor, Sophia, que havia conhecido no sétimo ano do ensino fundamental.

Tornara-se um niilista, adepto da descrença absoluta.

Em meio aquela fragilidade hostil, a qual foi designado a viver, respirava mal. Cansara-se de seu meio.

Sentia-se oprimido. Mas o tipo de oprimido sem revolta.O pária.

O rei dos sem-situação. Em meio a toda aquela perfeição, o descaso consigo. Gritava. Era tão intolerável a rotineira visão de todos os dias. Que passavam e sempre sem sua ordem prosseguiam.

Em meio a todos sussurros enfurecidos de sua mente, dirigia-se ao espelho, e nada mais deferia ao próprio reflexo do que foda-se.

Não choraria, sabia dos perigos. Jamais sorriria, pois nunca aprendeu.

Havia encontrado a verdade como Mulher.

E como homem, odiava ser controlado por um pinto.

Que raramente não usa a mulher como fuga.

A homogeneidade do barulho e do silêncio deturpava seu raciocínio. Precisava de dinheiro. Precisava pensar. Precisava sair.

Fechou a porta atrás de si, mas antes se lembrou de não esquecer a garrafa de saquê. Um belo gole, longo suspiro. Saiu sem rumo, a porta destrancada.

Subúrbio mal iluminado pelas luzes dos postes, que piscavam provocando zunidos; televisores reluziam na maioria das casas, alienação em massa.

Aquelas pessoas, pensava, mal tinham o que comer, e se deliciavam todas as noites nas festas da alta-sociedade no programa do Amaury Jr. Esqueciam seus débitos, suas doenças, enquanto viviam as aventuras e desventuras da protagonista da novela das oito...

Não suportava a idéia, não conseguia fantasiar, tão densa sua realidade. Seus pés sempre cravados ao chão.

Apalpou os bolsos a procura de seu maço de cigarros.

Restavam-lhe três.

Acendeu o primeiro.

E na tentativa de fugir dos ruídos e pessoas indesejáveis, evitou o centro da cidade, e locomoveu-se às margens.

Caminhou sem ser notado e sem nada notar. Pensamentos obscuros e confusos. A mistura de álcool e analgésicos, essa sim, fazia-se notar.

Caminhou durante aproximadamente uma hora, sem ao menos se dar conta de onde estava indo, e nesse meio tempo esvaziou a garrafa.

Sentiu-se tonto, até então caminhara observando apenas o chão, mas agora sentia a necessidade de levantar a cabeça e tragar mais profundamente aquele ar viciado, mistura de monóxido de carbono com um toque de oxigênio.

Sentiu-se pior. As pernas amoleceram de súbito, mas evitou a queda.

Conhecia muito bem aquele lugar, a rua, o colégio, as calçadas...Durante os últimos anos o havia evitado.

Sua visão se turvou, já não focava lugar algum, perdeu-se dentro de si.

Se por ventura um transeunte qualquer o avistasse naquele lugar, a essa hora deserto, o rosto pálido, seus olhos azul-acinzentados mal seriam notados devido a dilatação exagerada de suas pupilas; daria por certo que nele não havia qualquer sinal de vida, excluso o fato de estar em pé.

Sua mente foi invadida por sons e imagens de outrora.

O mesmo lugar, o mesmo colégio.

Era o dia em que revelaria seus sentimentos, abriria seu coração, e no seu íntimo, sabia que seria correspondido.

Lembrou-se de todo medo e insegurança que sentiu. Preferira escrever uma carta, revelando seus sentimentos à jovem Sophia.

Antes de soar o sinal, posicionou a carta estrategicamente em meio às folhas de seu caderno. Podia ver tudo em câmera lenta...Saíra primeiro...Atravessou a rua...Ficou de frente para o portão.

Ela saiu. O avistou e sorriu. Atravessaria a rua para se despedir...Três passos, algo cai ao chão...

Abaixa-se curiosa, apanha o envelope, reconhece a letra.

È tomada por algum tipo estranho de euforia, enquanto tenta decifrar os garranchos da primeira linha... Sorri...Antes de prosseguir, queria olhá-lo mais uma vez. Ergueu a vista, e teve tempo de ver um rosto cheio de terror, e ouvir um grito desesperado.

Não veria mais nada.

Suava frio, ainda imerso em suas lembranças. Aquele último olhar, expressara mais felicidade do que jamais sentira até então...O sorriso...

O caminhão em alta velocidade fugia da polícia. O impacto e o som que produzira...A mancha de sangue, que se arrastava por muitos metros...O corpo retorcido sobre a faixa de pedestres.

Atirou-se sentado ao chão, justamente como fizera no dia fatídico. Ainda em estado semiconsciente, acendeu seu penúltimo cigarro por reflexo condicionado.

Frenesi caótico de pensamentos...

Choque, dor, culpa, amor, a morte, sangue, sangue, culpa, desespero, fuga, culpa, sem-saída...

Dejà vú. Sentimentos repetidos em um samsara* com o peso de 36 infernos.

O que viria depois?

Imergiu com furor de volta a realidade, como que para fugir de um pesadelo, e como alguém que estava se afogando e consegue voltar à tona, abriu os olhos num suspiro claustrofóbico, o cigarro esvaído em cinzas.

Silêncio.

Inspirou, e teve a impressão de enxergar melhor, tudo parecia mais nítido. Ouvia agora o cantar de grilos, e como cantavam alto!

Sentia-se leve, muito leve, como se tivessem tirado todo o peso da Terra de seus ombros. No auge de todo o declínio, teve a percepção que poucos sábios tem, que ao tocar o fundo do poço, não resta outra saída senão subir.

Percebeu que até então, ele próprio havia sido seu pior inimigo. Criara e alimentara os fantasmas que lhe assombraram todas as noites até então.

Toda a fuga em nada resultara, pois não se pode fugir de si próprio.

Aquela rua parecia-lhe agora como outra qualquer. O fato de tê-la evitado tanto tempo era a origem do mal.

Nascia o dia. Nascera de novo. Levantou-se, sacou seu último cigarro e decidiu que caminharia, mas agora sabia seu destino. Jamais olharia pra trás, aos mortos seu suposto descanso, e a vantagem de não ter de voltar a morrer.

Escolheu viver.

Naquela manhã, renascido das cinzas, caminhou rumo à luz e vislumbrou seu reflexo.

Nada disse, mas pela primeira vez, sorriu.

*do sânscrito, ‘ciclo que nunca pára’.