PURISTA

PURISTA

(Almir Morisson)

Como os membros do Clube do Camelo são mais que amigos, quase irmãos é muito difícil haver briga entre eles. Mas discussões e afirmações de pontos de vista, isso de vez em quando acontece. Até nas melhores famílias.

Assim foi a polêmica que se estabeleceu em torno de uma letra de musica que fiz e que acabou virando um hit entre nós.

Um dia na minha antiga casa da Lauro Martins estávamos cantando o “João da Joana”, um samba que fiz sobre um hipotético senhor João, morador do bairro do Guamá, trambiqueiro de vocação, mas que depois de conhecer e se integrar com a Joana transmutou-se no mais pacato e honesto cidadão.

Em um trecho da letra dizia eu “tenho até medo de contar” quando fui interrompido por um dos colegas “camelísticos” que dizia mais ou menos assim:

- Aí tá errado. O certo é “sinto até medo de contar”. Ninguém tem medo. As pessoas sentem medo.

De nada valeu minha argumentação da permissividade poética, da diferença entre conotação e denotação, ou até do direito consuetudinário do uso, ele estava irredutível.

Na certeza que o modo de dizer era escorreito deixei passar, mas fui procurar exemplos na literatura e, no outro dia, sapequei-lhe um e-mail informando que no DOM CASMURO, obra consagrada do Machado de Assis, existiam inúmeros trechos relativos a “ter medo” e nenhum a “sentir medo”.

Pensei que a machadada colocava uma pá de cal sobre o assunto, mas ele retrucou dizendo que sua afirmativa sobre meu texto não era de erro, mas sim de inadequação, insistindo no seu achismo. Pra amenizar, ele acabava dizendo que era mais a minha música do que o “machado” do Assis.

Também insisti na querela respondendo: “Sem querer polemizar, mas, procurando no Aurélio, o décimo quarto significado de "ter" é "sentir", de modo que o emprego do termo está correto, o mais é frescura de purista.”

Acho que ele ofendeu-se (apesar de dizer que não) não sei se com a frescura ou com o purista, tanto que respondeu, citando uma porção de letras de músicas, por sinal belíssimas, que ele escreveu e reclamando dos adjetivos que lhe apus.

Acho que a ferida foi tocada pelo “purista”, pois o outro termo todos no grupo eram useiros e vezeiros de proferir sem que ninguém reclamasse.

Resolvi parar por ai, pois mais vale um ótimo amigo do que uma boa polêmica. Acontece que não dava, como sói fazer um bom camelo, de deixar passar a ocasião para mais uma letra de música:

PURISTA

(Almir Morisson)

Pra você que detesta

A alcunha de purista

Só digo poesia

Não tem regra fixa

Apesar da certeza

Do termo escorreito

Eu peço licença

Embora poética

Pra poder usar

Pois mesmo o Machado

Sentiu o que eu sinto

Sem ter nenhum medo

Dos mais eruditos

Pois até o sândalo

Louvou os seus ditos

Repito meu chapa

Que eu sigo cantando

Viola nas costas

Pandeiro no saco

Saudade no bolso

Fazendo mais samba

Sem medo do ter

Até agora não tem melodia pra esta, mas creio que cabe falar do João que está completinho, com letra, música e até gravação em CD, e que gerou toda essa falação:

JOÃO DA JOANA

(Almir Morisson)

João do repique

Só dava trambique

Fazia agito no Guamá

Voando num cheque

Tomou um pileque

Tenho até medo de contar

Ficou de “pirrique”

Teve até chilique

Daqueles de não levantar

Então Zé-moleque

Num samba de breque

Tentou as coisas arrumar

Aí a Joana

Morena bacana

Ficou com pena do rapaz

Levou pro barraco

Limpou os seus trapos

Lhe deu amor até demais

Não dá mais rasteira

Trabalha na feira

Já tem dinheiro prá gastar

João do repique

Tá com todo o pique

Voltou até a estudar

Depois de Joana

Não foi mais em cana

Já tem três filhos pra criar

João de Joana

Agora quer viver em paz

A música, com arranjo primoroso do maestro Tynnoko Costa e interpretação impecável do Helinho Rubens, está em:

http://www.recantodasletras.com.br/audios/cancoes/77655