PRANTO DIVINO

PRANTO DIVINO

(Almir Morisson)

Foram vinte e quatro horas de apreensão. Afinal alguma coisa dizia que a melodia era boa, apesar de ser uma valsinha. Naquele 3 de agosto de 1994, na volta de ônibus de Fortaleza para Belém, já entrando no Piauí, deu o estalo no Firmino. Veio a melodia completa na cabeça. Começou a assoviar, mas ficou com medo de esquecer. Procurou quem tivesse um gravador portátil, ninguém tinha. Chamou os familiares, cantarolou, assobiou mais uma vez, pediu pra que eles não esquecessem, mas passou aquelas vinte e quatro horas com medo que a memória lhe faltasse. Chegando na rodoviária ficou agoniado para conseguir um taxi. Felizmente ainda estava com a música na cabeça. Arrumou as malas apressadamente dentro do veículo e rumou pra casa. Na porta do edifício deixou o seu pessoal pagando o taxi e cuidando das bagagens enquanto correu para o apartamento. Ainda lembrava da música! Quando começou a tirar os acordes no violão ficou mais tranquilo. Viu que não esqueceria mais. Nem foi preciso gravar. Contou-me pelo telefone:

— A letra só saiu em 28 de agosto, bem cedinho. Ainda era de madrugada e caía uma chuva fininha. Saí na sacada e olhei para a mangueira do teu quintal. O vento batia e sacudia as folhas. Voltei correndo para o quarto, pois tinha tudo na cabeça. Podia esquecer, sacumé né? O quarto do Firmino tinha uma sacada que dava pro quintal da minha casa. Sempre gostei de muitas arvores, apesar das podas da minha mulher (que também gosta de plantas). A mangueira de que ele falava era frondosa e ficava cinco andares abaixo (o apartamento dele é no sexto). Somente agora estava claro que a música tinha que ser de Natal. O refrão chamava alguma coisa de Natal!

— Não tinha onde anotar. Peguei um envelope aonde vinha o extrato bancário da minha conta do Banco Real e comecei:

PRANTO DIVINO (Firmino Sousa Filho)

Um vento de chuva beijando a mangueira

Afeto do tempo tão lindo não há

Manhã, céu nublado quer-queira-ou-não-queira

É certo é Natal em Belém do Pará

Ah! ... é Natal, humildemente nasceu Jesus Cristo

E Belém ... tudo bem!, é sua terra natal

A chuva fininha lavando a cidade

Diáfano manto tão puro não há

Um pranto divino mostrando igualdade

Pra gente que vive em Belém do Pará

Ah! ... é Natal, humildemente nasceu Jesus Cristo

E Belém ... tudo bem!, é sua terra natal

Vamos olhar tanta pureza espraiada no ar

E o luar de Belém por certo virá também.

O Firmo ficou entusiasmado. Na reunião seguinte do Clube do Camelo, na sede campestre, mostrou pra todos. Parece que o Edyr teve alguma restrição, tanto que levou o original da letra no envelope do extrato bancário para dar algumas sugestões, mas nunca retornou.

O Firmino cada vez mais acreditava no potencial da musica, tanto que gravou uma fita e tentou vender os direitos autorais para a prefeitura. Nada. O prefeito apesar de conhecido e correligionario dele. não quis nem saber. Tentou algo no Banco Real com a conversa que tinha escrito a letra da musica no papel timbrado deles e nada! Infelizmente, por mais bonita que seja a música, quando se trata de arranjar dinheiro para apoio cultural, todo mundo coloca na última prioridade. Pelo menos aqui, na nossa cidade. O Edyr particularmente continuava a não gostar da música, mas como todos gostavam conversou em particular comigo, que era mais chegado, antes da gravação de nosso CD. Parece que dessa vez o gosto do mestre deu uma deslizada. 0 arranjo feito pelo Tynnoko com um coro infantil no CD, ficou espetacular. Gosto de melodias simples, daquelas que você ouve uma vez e consegue cantarolar no dia seguinte. O Pranto Divino é assim: O ritmo, a letra e música agradáveis. Que eu saiba é a única música de Natal, genuinamente paraense, gravada. Na minha opinião a única musica brasileira de Natal que considero igual ou superior a do Firmino é aquela marcha rancho do Assis Valente que diz: "...eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel.." e mais adiante "...Papai Noel vê se você tem a felicidade pra você me dar...". Pra mim, a do Firmino bota no chinelo todas as outras. Mas como sempre dizem, gosto não se discute e cada um tem o seu. Eu tenho o meu e respeito o dos outros! De qualquer maneira parece que o "Pranto Divino" agradou, pois a manifestação espontânea do Adamor do Bandolim, no show que fizemos no Teatro Gabriel Hermes, enaltecendo a música, os magníficos arranjos do maestro Silvério para o Madrigal de Belém e as apresentações da música por outros grupos vocais, como o do Serviço de Atividades Musicais da Universidade Federal do Pará SAM comprovam o fato. O Firmino não conseguiu vender os direitos autorais como queria, inicialmente. Mas já me disse que está feliz com a divulgação da música e completou:

— Eu quero é que caia no domínio público?...

A melodia do pranto Divino na interpretação do próprio autor pode ser encontrada em:

https://www.youtube.com/watch?v=n3PY1bSaOSg

ou em sua gravação de estúdio:

https://soundcloud.com/almirmorisson/pranto-divino?in=almirmorisson/sets/clube-do-camelo-1997-poetas