A COSTUREIRA

Acordei em meio à escuridão.

Estranho como são estas coisas de se acordar no meio da noite. Não sabemos onde estamos nem temos a menor noção de tempo e espaço.

Entretanto bastaram apenas alguns segundos para que eu tivesse certeza de que estava em minha casa.

De onde estava podia ouvir nitidamente o pedalar interminável de minha mãe na máquina de costura.

Aquela era a sua vida, seu dia a dia – e noite –, seu ganha pão.

Levantei-me em silêncio.

Precisava beber um pouco d’água. Tateando aqui e ali segui em direção à cozinha. Não queria acender nenhuma lâmpada, para não tirar a atenção de mamãe de seu trabalho.

– Volte para a cama. Preciso entregar esta roupa amanhã antes do almoço – teria me dito se ela me visse ali àquela hora.

Curiosamente naquela época, quando era ainda menina, os relógios não nos faziam falta. Todo o tempo era marcado ou regido pelos momentos das refeições: antes ou depois do almoço, antes ou depois da janta...

Em poucos segundos consegui chegar à cozinha, alcancei o filtro e em seguida saciei a minha sede. Por um instante imaginei que se um dia me faltasse a visão, conseguiria me virar sem grandes dificuldades. Pelo menos dentro de minha casa.

Pé ante pé estava voltando, quando percebi que o som da máquina de costura havia cessado.

Mamãe provavelmente já havia dado por finalizada aquela jornada de trabalho. Jornada esta que começara antes das seis da manhã, seguindo dia afora, invadindo a noite... e a madrugada.

Instintivamente procurei acelerar os passos. Melhor não ser vista, nem percebida.

Entretanto, logo ouvi as pedaladas recomeçarem.

Provavelmente alguma costura que não havia ficado a gosto e estava sendo refeita.

A minúscula sala de costura, onde trabalha eternamente a minha mãe, ficava em um cômodo contíguo à cozinha.

Parei por um instante e fiquei ali escutando aquele barulho ritmado, interminável, e que me era deste ainda bebê, muito familiar.

Mergulhada ainda na escuridão, fui até a porta do quartinho de costura.

A porta estava entreaberta e lá de dentro o que vinha, além do som da máquina de costura, era um fiapo de luz.

“Como era possível se enxergar direito alguma coisa com tão pouca claridade?”, pensei.

É que as lâmpadas de nossa casa naquela época, todas pendentes do travejamento de madeira, eram amarelas como laranjas maduras.

Mas minha mãe enxergava, sabe-se lá Deus como.

Pela fresta da porta pude ver mamãe quase debruçada sobre a máquina, com os olhos grudados na peça de pano que corria velozmente sendo perfurada centenas, milhares de vezes pela agulha em apenas alguns segundos.

– Se sobrar uns retalhos bonitos deste vestido que estou fazendo, qualquer hora lhe faço um saia – anunciou mamãe certo dia.

Saia!

Aquele era um dos meus sonhos de menina já com quase cinco anos: vestir uma saia.

Mas os tais retalhos bonitos nunca sobravam e o meu sonho de menina ia sendo adiado.

Torcia para que alguma das clientes de minha mãe errasse algum dia o tamanho do tecido comprado e viessem pelo menos alguns centímetros a mais.

Quase nunca vinham. Mas quando isso acontecia, mamãe devolvia às clientes as sobras do pano.

Raras não foram as vezes que eu, ao ajudá-la a varrer o quartinho de costura, media com minha mão minúscula os tamanhos dos retalhos espalhados pelo chão.

Todos muito pequenos. Entretanto, muitos deles serviam para confeccionarmos roupinhas para nossas bonecas.

Outros, talvez servissem para uma saia a ser usada nas festas juninas. Esta sim, poderia ser feita de retalhos tão pequenos quanto aqueles que acabavam indo para o lixo.

Mas mamãe guardava muitos deles, sonhando fazer algum dia uma colcha de retalhos para sua cama. Coisa que jamais aconteceu.

De repente o som da máquina cessou novamente.

Pensei em sair dali, mas já era tarde.

Mamãe voltou-se para a porta e perguntou:

– É você, minha filha?

Empurrei a porta em entrei.

– Não deveria estar na cama? O dia já está quase amanhecendo.

Tive vontade de lhe fazer a mesma pergunta, mas me contive.

– Venha ver o que estou fazendo – convidou mamãe abrindo sobre uma mesinha ao lado da máquina um vestido vermelho.

Ao me aproximar da peça de roupa, percebi logo se tratar de um traje para alguma criança.

– Muito lindo, mamãe.

Por um instante a curiosidade impulsionou-se a indagar quem seria a dona daquele magnífico vestido.

Não perguntei nada.

Afinal, na tarde do dia anterior havia visto Dona Esmeralda entregar à mamãe um embrulho. Ali dentro por certo estaria o tecido que dera origem àquela verdadeira obra de arte.

Lembro-me de que na hora de sua saída de nossa casa, a velha amiga de minha mãe olhou para mim, que brincava no chão da sala, e sorriu de forma secreta.

Por certo aquele vestido que estava ali naquele momento diante de mim era roupa para sua neta. Roupa a qual seria usada em sua festa de aniversário, o qual seria comemorado no domingo seguinte.

Não me contive e passei a mão por sobre a peça de roupa.

Seda!

Aquilo era o que de mais maravilhoso poderia acontecer com uma menina de minha idade: usar um vestido como aquele.

Nem as princesas personagens dos mais fantásticos contos de fadas teriam algo sequer parecido.

Por um momento fiquei a imaginar quem seriam as costureiras dos vestidos daquelas princesas dos livros.

Seriam elas suas mães?!

Bobagem! Onde já se viu mãe de princesa ser costureira?

Nenhuma mãe, em todo o mundo, e nem em todos os reinos, mesmo que fossem encantados, teriam competência para costurar um vestido tão lindo quanto aquele.

De repente senti uma ponta de inveja de Madalena, a neta da cliente de minha mãe, aquela que estivera em nossa casa no dia anterior.

Definitivamente aquilo não era uma “ponta de inveja”. Era uma inveja imensa, do tamanho do mundo.

“Cuidado, minha filha, que inveja é pecado, e dos grandes, viu!”

Aquelas eram as palavras de minha mãe que sequer foram pronunciadas, mas que foram por mim ouvidas em tom de repreensão.

– Venha aqui – pediu mamãe voltando-se para mim e preparando o seu colo para que eu nele me aconchegasse.

– É muito lindo! – disse eu num quase sussurro.

– Também achei muito bonito – comentou mamãe, aparentemente alheia ao meu sofrimento naquela hora.

– É da Madalena?

– Sim. Ela vai vir amanhã lá pelas nove horas para fazer a prova.

– Acho que serviria para mim – disse com uma voz quase inaudível.

– Quer experimentar?

– Não, mamãe. O vestido é da Madalena.

– O que tem isso? Quem vai contar para ela que você o experimentou? Eu não vou – disse mamãe com um largo sorriso.

– Mas isto não é certo – comentei ávida para que minha mãe insistisse em seu intento.

Mamãe fez uma cara de descontentamento e completou:

– Então deixa para lá. Se você acha que não é certo...

– Vamos lá! – exclamei já saltando de seu colo já com os braços erguidos, me preparando para que mamãe me tirasse a camisola.

O vestido caiu como uma luva!

Lindo, perfeito, admiravelmente bem feito. Se tivesse sido feito sob medida para mim, talvez não tivesse ficado tão bem ajustado no corpo.

Dei diante de minha mãe duas voltas sobre os calcanhares, fui até a porta e voltei caminhando como se estivesse desfilando em uma passarela, daquelas que às vezes eu via na televisão.

Pude ver por alguns instantes o cansaço daquela mulher, acumulado por anos a fio, indo embora. Seu semblante ficou radiante e ela sorriu como poucas vezes eu havia visto.

Acho que mamãe viu naquela hora diante dela uma princesa de verdade. Descobri então que eu era a melhor parte de sua vida, de seu mundo tão pequeno, mundo este restrito quase que exclusivamente àquela casa e àquele trabalho.

E eu na minha pequenez e inocência descobri naquele momento que as costureiras são como os mágicos tão frequentes nos livros que ela lia para mim quase sempre quando tinha tempo. Elas tomam nas mãos um simples pedaço de pano e fabricam com ele um amontoado de coisa belas, de sonhos.

Minha mãe em seguida ajudou-me a tirar o vestido, ajudou-me a vestir de novo a camisola. Ainda com um aspecto radiante, tomou-me pela mão e levou-me para a cama.

– Agora precisa dormir. Amanhã vai ser um longo dia.

Coisas de minha mãe. Onde já se viu um dia ser mais longo que outro?

Somente anos mais tarde pude compreender que aquela era uma das grandes verdades da vida.

***

No dia seguinte, por volta das nove horas, chegaram em nossa casa a Dona Esmeralda e sua neta Madalena.

Foram buscar a roupa que mamãe passara boa parte da noite costurando.

A pequena Madalena nunca fora minha amiga, uma vez que morava a certa distância de nossa casa. Eu a via somente em companhia de sua avó. E isto quando apareciam as duas lá em casa para levar algum tecido para que mamãe lhe fizesse alguma roupa.

Quando eu era criança, meus amigos estavam nas proximidades de nossa casa ou eram meus primos.

Entraram as duas e eu fiquei no alpendre brincando com uma boneca “dorminhoca” de cor vermelha. Aquela boneca pertencia à minha irmã mais velha. Mas, sempre que possível, eu a pegava escondido.

Depois de alguns minutos, ouvi o chamado de minha mãe:

– Venha cá, minha filha!

Ao entrar na sala logo vi Madalena com um pequeno embrulho não mãos.

– Sei que não somos amigas, mas mesmo assim vim lhe convidar para o meu aniversário no domingo.

– Posso ir, mamãe? – indaguei certa de que teria tal consentimento.

– E este é um presente que mandamos fazer para você – falou a menina, entregando-me o pacote.

Trêmula, tomei nas mãos o que havia ganhado.

Mal comecei a desembrulhar o pacote, e vi o vestido que mamãe havia costurado na noite passada.

Em menos de dois dias eu seria verdadeiramente uma princesa.

VERSO E PROSA
Enviado por VERSO E PROSA em 12/12/2017
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