Por falso e por canalha

Mamãe descascava batatinhas e cantava. Era a mãe de Adélia Prado que fazia isso, segundo um dos poemas dessa divinopolitana admirável, mas mamãe também o fazia. Foi olhando-a e escutando-a durante sua faina diária que aprendi Nelson Gonçalves, Anísio Silva, Carlos Galhardo, Ângela Maria, Vicente Celestino e Luiz Gonzaga, entre outros.

Mamãe cozinhava o trivial e cantava sublimemente, sem ter consciência disso, espantando da alma a maresia dos dias. Desde as canções de ninar, passando pelas românticas como “A ti Flor do Céu”, à trágica “Noite de Reis”, onde a intérprete-personagem confessava ter matado o marido, “por falso e por canalha”. Na letra, o filhinho colocava o sapatinho “lá fora”, sem saber que não iria ganhar presentes, pois o pai já não existia. Minha irmã Kátia morria de medo desse “por falso e por canalha”, não combinava com mamãe.

Aliás, isso de dar presentes às crianças na Noite de Reis, no 6 de janeiro, era antes da Coca-Cola e de Papai Noel, pois eram os reis magos os portadores dos presentes para o Menino Jesus e, quero crer, para todos os outros meninos do mundo cristão, antes da americanização dos continentes. Na porção hispânica do globo terrestre essa tradição ainda persiste.

Havia poesia também até no dia a dia dos burocratas. Um colega de trabalho, que só sabia arquivar, assoviava e arquivava. Arquivava e assoviava. E assoviava e arquivava tão alheio ao mundo, mergulhado na sua música, que era feliz, sem adjetivos e advérbios. Dobrar a folha ao meio, furar o papel, abrir as pastas e colocar o documento na estante de acordo a sua data, assunto, grau de sigilo, enquanto assoviava, era comovedor, transcendental.

Naquele tempo, eu achava que quem arquivava não podia ser feliz. Esse colega era a prova viva de que eu me enganava redondamente. Assim como quem descascava batatinhas, batia o bife e cortava cebolas e alho, o arquivista era feliz e, provavelmente, não sabia. A felicidade, para mim e alguns outros, estava no oposto, na busca insana do cimo, do sumo, da torre mais alta da catedral do conhecimento, não ao rés do chão, no dia a dia, não nas cozinhas cheirando a frituras e nas estantes fornidas de papéis antigos, inglória missão de congelar o tempo.

Hoje vejo que cozinhar pode ser arte. Cortar em cubos a cenoura, em rodelas o tomate, deixar os vegetais folhosos por baixo, à moda de tapete, contrastando em cores para se comer antes com a vista. Hoje também canto, enquanto me preparo para cozinhar. Sou arquiteto ao montar o prato de saladas. Paro e olho, peso e meço. O trabalho começa ao escolher as frutas e verduras, o tipo de feijão, a qualidade do arroz, com muito ou pouco amido, tipo o basmati do Nepal. Nesse ritual, entra em cena o encarnado pleonástico da carne, a aparência dos ovos, o verde profundo das favas e o vermelho roxo das beterrabas. Arquiteto, sim; poeta também.

Mas a novidade em tudo isso é que afirmo que há poesia na prosa. Sim, na prosaica comida do dia a dia: enquanto a preparo, vou viajando pelo mundo dos poetas, dos cantores, dos artistas, dos filósofos, embarco numa viagem sem rumo, cheia de cores, cheiros, sons, sabores, tessituras. Isso também tempera a comida. Mais ainda se o preparo é acompanhado de um bom vinho.

Portanto, a mãe que cantava as tragédias, enquanto descascava as batatinhas e batia o bife do almoço, fazia poesia, terapia e lavava a alma. O amigo que assoviava e arquivava, assoviava mais triste que a flauta feita de tíbia humana, como a do romance boliviano “Manchay Puitu, el Amor que quizo ocultar Diós”, de Néstor Taboada. O colega arquivista liberava os sentimentos mais profundos de sua alma, como fazia “O Violino Vermelho”, nome do filme famoso, que fora tingido com o sangue da mulher amada.

Há beleza em tudo, se estamos belos por dentro.

(Ciudad del Este, Paraguai, 12/12/2017)

Referências

Noite de Reis, interpretada por Eladir Porto, de Pedro Maffia e Jorge Curi, versão de Virgínia Amorim. Link abaixo para ouvir a música:

https://www.youtube.com/watch?v=gcWEBPu-HxI

“O Violino Vermelho” (The Red Violin)

Filme de 1998 do gênero drama, dirigido por François Girard e co-produzido por Canadá, Itália e Reino Unido. O filme percorre três séculos e cinco países, enquanto o violino passa de mão em mão.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 15/12/2017
Reeditado em 13/09/2019
Código do texto: T6199601
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