Sombras

O espetáculo começara e ela estava tão eufórica que nem percebera que prendia a respiração e estava com os olhos arregalados. Se alguém pudesse enxergá-la, veria seu olhar pueril vidrado e brilhante que acompanhava as sombras no palco colorido como se fossem vivas. Ela continuava entrando nesse jogo, como se a história da sombra de Peter Pan fosse possível.

Entre os movimentos produzidos pelos atores, sua memória a traia incluindo os vôos de palminhas pássaros na parede de um quarto na praia nos idos 80. Asas tremelicando. Asas de cisne. Asas de gaivota. Ela queria ter asas!

Umas das coisas que gostava nas sombras era sua plasticidade. De pequena tornava-se grande em segundos. Sua sombra era grande. E quantas vezes ela até se sentia a produtora de grandes sombras para o repouso de algumas pessoas. Era quase uma mulher baobá. Como voar sendo baobá? Só se fossem suas sementes. Vai ver por isso gostava de ensinar, espalhava sementes e voava simbolicamente por aí.

E quando sombras diferentes se fundiam e formavam outra coisa, completamente inusitada? Era quase mágica. Uma mágica de recriação e de apagamento da individualidade anterior. Credo! Pensando bem nem é tão bonito assim. Parece casamento, aparece um nós que não existia antes e engole o eu. O eu fica na sombra, assim como ela estava agora. Irreconhecível.

As sombras, elas mesmas, são irreconhecíveis, às vezes. Será que tem duas sombras iguais? Ela gostava também de fotos de sombras. Congelamento do intangível. Vai ver ela via a sombra na foto como retrato da sua realidade. Brincadeira de eternizar a imaginação. Ela queria voar, mas não conseguia nem fazer a imaginação dela voar mais. Estava congelada! Congelada e não identificada, igual a sombra na foto.

É, muitas vezes se sentia sombra. Quando falava sobre suas angústias e era ignorada, quando cuidava das coisas coletivas sozinha, quando estava sobrecarregada e ninguém lhe oferecia ajuda, quando a única coisa que queria era calor ou silêncio ou escuridão e recebia o oposto, quando falava e não recebia resposta, quando não encontrava suas coisas porque alguém tinha trocado de lugar, quando… quando… quando. Podia terminar o espetáculo e ela ainda teria muitos quandos para enumerar.

Nossa! O espetáculo! Tinha mergulhado tão fundo na sombra de suas tormentas que não enxergou mais o espetáculo. Era uma borboleta que voava no fundo ciano do palco. Ah… de novo o vôo. As asas. E logo uma borboleta. Ela já se sentira borboleta um dia, agora era lagarta de novo. As palmas. Affff… Acabou? Acabou!

Saiu do teatro meio hipnotizada com a imagem da borboleta impressa na memória. E aí pensou o óbvio. Toda lagarta vira casulo e, depois, borboleta. Então… então era só continuar nesse caminho que logo iria voar!

Pensava isso enquanto arrumava o coque desgrenhado de seus cabelos. Então viu no chão a sombra, produzida pela manga morcego que usava, aberta com as mãos juntas acima da cabeça e enxergou asas diferentes, em uma ave que tinha um bico pontudo apontado para o céu, desenhado pelo hashi que adornava seu penteado. De repente entendeu tudo: ela não era lagarta coisa nenhuma, nem seria borboleta. Ela borboleta já tinha morrido como as da vida real, que cumprem sua função e brevemente se vão. Aquele seu sofrimento ela mesma provocava buscando uma renovação tal qual a ave que via contornada no cimento. Sorria satisfeita com a certeza que em breve iria realizar seu sonho. Agora iria voar! E seus voos seriam muito mais longos e altos, assim como a águia que sob a luz amarela da praça por seu corpo era produzida.