A fraternidade é uma conversa sem fim

Um mês depois, no dia 22 de dezembro, fui visitar na casa de seu tio o soldado norte-coreano que havia fugido num jipe em alta velocidade, caído num buraco, corrido a pé, cruzado a fronteira com a Coreia do Sul e sido alvejado com seis tiros.

- “Oh Chong Songbeen é o meu nome”, disse o soldado enfermo ao perceber perto dele o brasileiro que o visitara no hospital, no mês passado, fizera muitas perguntas e parecia ter dificuldade de memorizar nomes coreanos.

Ele passou por duas cirurgias para a retirada das balas. Quando foi encontrado baleado na zona desmilitarizada, encontrava-se num estado nutricional lamentável. Comia grãos crus de milho e seu intestino apresentava lombrigas que há muito tempo não eram registradas na Coreia do Sul. Já encontrava-se em plena recuperação, andava pela casa, mas estava deitado quando cheguei.

- “Vocês, brasileiros, têm memória fraca”... disse ele, apertando a minha mão.

- Oh, soubeste que outro soldado, teu colega, fugiu?

- Não.

- Foi ontem. Simplesmente, foi caminhando pela densa neblina que baixou na região da fronteira. Ninguém percebeu e, em pouco tempo, ele já estava do lado de cá. É um jovem de 19 anos. Trazia junto um rifle Kalashnikov.

- Alguma outra novidade?

- A Coreia do Norte foi punida pelo Conselho de Segurança da ONU. Vai receber só 10% de suas importações de petróleo a partir de agora. E todos os norte-coreanos que vivem fora do país deverão ser repatriados dentro de dois anos. O motivo foi o lançamento de um míssil intercontinental em novembro passado. O governante do teu país, King Jong-un, interpretou essas medidas como uma declaração de guerra.

- É uma pena... São cem mil norte-coreanos que vivem fora do país. A maioria estão na China e na Rússia. Quinhentos milhões de dólares por ano de contribuição compulsória deixarão de entrar no país. Ficaremos mais pobres ainda... Mais desnutridos... E as fugas aumentarão...

- E os Estados Unidos continuam com suas atitudes agressivas e beligerantes. Insistem em fazer manobras militares na região. Não aceitam a Coreia do Norte como potência nuclear. E Trump garante que a solução militar para esse conflito na península coreana já está pronta.

- Percebo que a situação está braba. Os espíritos estão excessivamente armados...

- Olhando de forma mais ampla, o mundo está confuso... Segundo Ágnes Heller, filósofa húngara, o século XXI não acredita mais no ideal do progresso. O aquecimento global deflagrou uma crise ecológica. Os recursos naturais e a biodiversidade passam a exigir proteção. Portanto, o consumismo está perdendo sua base material... A economia tornou-se financeira, especulativa. E nós precisamos buscar motivos novos para viver!

- Eu venho de uma ditadura extremamente fechada. Percebo que aqui fora, no resto do mundo, vocês não tem suas bases nem seguras, nem resolvidas...

- Nós estamos desfocados faz tempo... A reconciliação é hoje o clamor mais forte da humanidade! Quem imaginou que depois da experiência dos campos de concentração e da explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagazaki na Segunda Guerra Mundial nós, humanidade, seríamos capazes de puxar uma briga, deflagrar um conflito? Necessitamos com urgência transformar o mal em bem, quer dizer, estabelecer alianças. Construir pontes para promover a paz.

- Não sei se nós da Coreia do Norte sabemos o que é uma relação humana saudável. Vivemos sempre num estado de extrema privação, de fome, de susto... Às vezes, com medo até da própria sombra...

- É necessário aceitar o outro. Preciso considerar e admirar o outro para que ele tenha confiança nesta relação humana que começa. Admiti-lo como irmão. Devo alegrar-me com o dom do outro. Isso na família, na vizinhança, entre as nações... Parece tão simples. Mas, quando foi que realizamos isso em larga escala?

- Que interessante! Eu gosto de ouvir isso! Continue.

- A fraternidade não é um dom da natureza. Ela deve ser construída. É um projeto ético. Apesar de todos os nossos erros, é possível tornar-se irmão!

- Abramos esta porta! Abramos todas as portas e comportas! Ah! Minha pobre Coreia do Norte... Encerrada num casulo, nunca viu a luz do sol.

- E nós que vivemos fora do casulo, não sabemos nos comportar...

- Pelo menos, não como deveriam com toda a liberdade que dispõem...

- A liberdade proporciona poder. E o verdadeiro poder é o poder de reter-se! Não posso soltar a fera, a onça pintada que mora em mim. Senão, matarei o outro. Atualmente, dois governantes estão a ponto de soltarem suas feras interiores – esvaziarem completamente seus containers de ódio – com repercussões externas horríveis. É uma insensatez! O poderoso verdadeiro é aquele que sabe parar seu poder; não o usa nunca completamente. Tem poder sobre si próprio. Não se pode proibir alguém de odiar, mas sim de agir de acordo com o seu ódio para a destruição do outro. E é aí, neste ponto, em que nos encontramos...

- Kim Jong-un é apresentado para nós como um grande homem, um exemplo a ser seguido... Suas conquistas, sua história familiar, seu governo, seus benefícios para o povo... Não se fala noutra coisa no rádio, na TV.

- Vivemos na chamada “sociedade da informação” do lado de cá, mas o que predomina tanto lá como aqui é a “sociedade da manipulação da informação”. É uma tristeza! Muita mentira, muita intriga... Tudo fachada... Devemos varrer esses entulhos de interesses que espezinham a palavra e minguam sua força. Quem confia nela hoje? Diz num livro revelado composto chamado Bíblia: “No princípio existia a Palavra, a Palavra estava em Deus, a Palavra era Deus. Tudo foi feito por meio dela e, de tudo o que existe, nada foi feito sem ela. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens.” (Jo 1, 1-4) Que distância! Meu Deus! Mas não te assusta, Oh: a palavra do irmão sempre será uma palavra confiável!

- Essa conversa está tão boa! Nunca tive uma experiência assim. Eu gostaria que ficássemos sempre aqui. Conversando...

- Eu também...

Miguel Wetternick
Enviado por Miguel Wetternick em 10/01/2018
Reeditado em 09/07/2019
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