Seletor,o que era isto?

Sentado na velha poltrona reclinável julgava a primeira televisão adquirida com esforço em múltiplas prestações. A fantasia técnica desejava sempre alcançar a maioria para controlar os desejos e aptidões dos consumidores. Guardava ainda o hábito do jornal impresso que ficava solicitando sua atenção na mesinha do lado. Mesinha floral, clássica com cinzeiro. Por um instante desmagnetizável a televisão ficaria inerte. Só se comportaria bem lustral num aperto inicial de botão.

Toda essa geração lembrava a sua a cara de telemaníaco desmamável. Jamais poderia alcançar que a televisão perderia seu fascínio no fulgor das novas tecnologias. Existem novos recursos, era apenas isto. Lembrava o quanto o Nelson Rodrigues foi o inventor da dramaturgia toda. Mal sabia que a genialidade do Nelson (falava como se tivesse sido amigo íntimo do Nelson) provocaria uma continuidade e passaria do dramático para o dramalhão com pinceladas de doutorice, infidelidades para entretenimento, sempre terminando num casamento milenar, envolvente, em todas as finalizações enlanguescentes. Com cara republicana ria-se de mais um ítem: teríamos principes e reis para todos os lados caso Deodoro não brandice a espada.

Absortividade e abundância requer mais. Ficava nervoso, possesso. Tinha uma televisão toda sua com um objeto profundo irreal e quase inútil: o seletor. quando os técnicos terminaram de adiconar a televisão na Rua Jandaia, 29 - jamais esse frágil morador, imaginaria que o poder da totalidade no contexto da usabilidade, estaria no poderoso e impotente seletor. Ligar e desligar não conta. Isto no tempo em que a vida não vivia em rede. Sua casa não era rede para ninguém e todos os aracnídios eram varridos pela esposa feliz, faceira, com seus horários de televisão olorado pela feijoada. O representante comercial da loja com açucarada educação pelo telefone lhe disse:

- Este botão segue girando 360 graus e assim trocará unitáriamente de canal. O senhor e sua família poderá desfrutar de um ótimo divertimento.

Garantiu a plenitude que não havia. Sentia o dever de lhe dizer múltiplos obrigados como numa oração caso funcionasse inteiramente. Aquele aparelho coriscante brilhava aos vizinhos quando a janela permanecia aberta nas noites cálidas de verão estrelado. Dava pena de saber que os vizinhos não possuíam um aparelho. Logo logo haverá televisão até sobre o telhado, pilheriava, para desfazer num sopro, esta culpa de magia não compartilhada.

De modo inaugural foi ele quem sentou-se para observar em silêncio demolitório aquele objeto singular. Por por longos minutos fitou só o vidro com sua imagem de roupão dentro dela. Reacendeu a luz (O controle remoto sequer havia sido sonhado pelo gênio de Robert Adler) para ligar pela primeira vez. Teve um choque. A televisão apareceu cheia de pontinhos através dos canais fora do ar. Ligou desesperado para o técnico da loja. O homem enredado garantiu que esse já era... Já era outro assunto técnico, longe da instalação... Completou após respirar o novo gole de ar. Veio-lhe uma inspiração possível para o cliente: utilize antena de trezentos e oitenta e seis mil quilometros para que assim o satélite aproximasse a imagem do aparelho.

Muito educado e prestimoso revelou que o nome comum das estações que não funcionam era chuvisco. Havia comprado uma televisão com chuvisco. Girava o seletor com força suficiente para alcançar trezentos e sessenta graus completos e havia uma totalidade de chuviscos. Funcionavam duas ou três emissoras. O resto era chuvisco.

Foram anos de frustração. Lembrava ainda hoje rindo sozinho que perto de Copa do Mundo a equipe técnica acionava seus estímulos populares para melhoria dos canais já existentes. Na Copa de setenta o gol de cabeça de Pelé fora visto com grande clareza. Estapafúrdico era conviver com a máquina funcionando pouquíssimo muitos e muitos anos. Maldito seletor ingrato que girava para um mar de chuvisco extraterrestre, emitindo ruído pelo fundo das ondas eletromagnéticas . Insuportáveis até para liquidificador triturando coco.

Ocorria o mesmo com o dial no rádio. Compreendeu como estamos inseridos numa espécie de submissão pela falta de controle de qualidade total e real. Para funcionar tudo perfeitamente precisamos nos tornar profissionais de verdade. Triste é que compramos objetos que são apenas parte de mera amostragem. Aceitamos que um simples radinho se torne imensamente divertido apenas funcionando parcialmente. Ninguém se aborrece com isto. Ninguém reflete sobre isto. A promessa é imensa, mas o domínio é mínimo. O nobre cavalheiro que desejar na atualidade não cair nessa terá que se explicar nem tão nobrememte á fábrica de dinheiro com delitos existentes neste Brasil. Brasil republicano onde o delito vira preço. Cheque em branco até o preenchimento do julgamento. Delitos valem fortunas no processo de correção apurada no final das contas. A luta entre entretenimento e delito ampliou-se em plena era quântica digital. Dá-lhe lei!

Foi ao psicanalista para desvendar como conseguiu se tornar telemaníaco nesse período. Sonhava com enormes orelhas de burro-homem crescendo aos poucos quando descobriu a verdade: o infinito está sendo estreitado cada vez mais pelos donos de tudo. A nossa atenção é subtraída sem que possamos controlar de fato nossa vontade de conter o conhecimento livremente. Algo universal, infinito, incontrolável está sendo manuseado de modo maquinante. Havia no fim algo sobrenatural nos dias atuais: Os objetos inanimados são animados.

O seletor é que é invisível.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 19/03/2018
Reeditado em 19/03/2018
Código do texto: T6284731
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