Quando a gente vira pai do pai da gente

E quando a gente vira pai do pai gente

Hoje é aniversário de meu pai, aqui estou eu em um dilema com as palavras, tentando encontrar aquelas que consigam abrigar um por cento do que sinto, do que ele representa, mas parece que nessas horas as palavras se escondem, fogem da gente. Lembrei-me de algumas das situações que fazem sentido nesse momento.

Outro dia encontrei meu pai no topo de uma escada de mais ou menos cinco metros, sem o uso de cinto de segurança, pintando uma parede na maior tranquilidade. Quando vi aquela cena me desesperei e pedi veementemente para que ele descesse, que era muito arriscada aquela atitude. Ele simplesmente olhou para trás com um sorriso e continuou a trabalhar. Aquele sorriso meio sarcástico dizia-me que ele estava confiante, que mal nenhum aconteceria e que era uma preocupação desnecessária de minha parte.

Comecei a chorar e liguei para o meu irmão, pedindo para ele intervir, porque meu pai não me atendia.

Depois de um tempo comecei a refletir e pensar de quantas vezes meu pai me viu subir em escadas altas, perigosas, sem o cinto de segurança chamado maturidade , sem que nada pudesse fazer para me impedir. Era preciso deixar que eu subisse. Talvez aquele sorriso dissesse “Quantas vezes temi que você se machucasse__ e não o físico que com algumas intervenções cirúrgicas e medicamentos pode se recuperar__ mas o coração que uma vez machucado ,pode levar anos e anos e nunca voltar ser o mesmo.

Hoje fico apavorada quando vejo meu pai sair na direção de um veículo, fico repetindo umas duzentas vezes: ”Cuidado com ultrapassagem, não exceda na velocidade, atente para a sinalização” e mais uma vez me transporto para alguns anos atrás e vejo a figura de meu pai de joelhos ,horas e horas em altas madrugadas, intercedendo por mim e meu irmão. Com certeza os acidentes que ele temia sejam bem mais fortes ,podem ser fatais ou trazer limitações para o resto da vida.

Hoje fico o tempo todo preocupada com a saúde de meu pai, o pedindo para não se esforçar tanto, não carregar excesso de peso e mais uma vez ,parece que escuto a sua voz calma e suave tentando me convencer a deixar a viagem mais leve, a abandonar alguns pesos( preocupação excessiva, prepotência, impulsividade) ,mas a soberba e o sentimento de invulnerabilidade naturais da juventude prevaleciam. Até que um dia esse peso se tornou insuportável e tive que fazer a dura escolha: deixá-lo pelo caminho ou ficar paralisada.

Hoje morro de medo que o coração de meu pai enfraqueça ou pare de bater, chego a ter pesadelo e acordo desesperada ,mas logo me iludo com a ideia de que super herói é imortal, mas volto ao tempo e lembro de que o que meu pai mais temia era ver minha fé enfraquecida ou que por algum percalço ,deixasse de acreditar na grandeza e soberania de Deus e o abandonasse pelo caminho. E hoje entendo que perder a fé e a confiança é bem pior que perder a vida ou qualquer outro bem.

Hoje me vejo tentando apagar incêndios, minimizando problemas referentes a igreja, às vezes tentando até esconder ou não deixar que chegue até meu pai situações desagradáveis que o afetará psicologicamente de alguma forma e o deixará triste. Ironia do destino ?Não sei . A frase é exatamente a mesma “ Ele não tem idade para suportar isso!”. Mais uma vez como num flashback passa um filme em minha cabeça e me lembro de como meu pai omitia o lado negativo, humano, frágil dos membros da igreja e de sua liderança. Ele temia muito que eu e meu irmão nutrisse alguma revolta e esquecesse o lado positivo, sadio ,que é mil vezes maior que as falhas, nem dá para comparar. A frase era a seguinte “Eles não tem idade para ouvir isso”.

Sábia decisão!! Eu e meu irmão crescemos, andamos por vários lugares, conhecemos um pouquinho de coisas, ouvimos uma enxurrada de opiniões ,presenciamos alguns valores que eram tão preciosos serem invertidos a cada dia, mas a pintura da igreja que nos passaram ainda continua viva com os mesmos tons, embora conscientes de que houve desbotamentos com o tempo, que apareceram manchas, mas o que prevalece sempre nos nossos corações é a beleza e nunca as imperfeições. Ainda é o melhor lugar do mundo para mim, e acredito, para meu irmão. É o lugar onde nossas almas se sentem acariciadas , abraçadas e confortadas.

Hoje olho para meu pai e vejo algumas marcas do implacável tempo “ cabelos brancos, rugas, voz cansada”. Sinto uma certa sensação de impotência ,pois queria ter o poder de parar o tempo e deixá-lo sempre jovem. Me lembro do quanto meu pai se preocupava com as marcas que permitimos fazer em nossas vidas , que uma vez colocadas estarão sempre ali como tatuagens nos assombrando e nos remetendo a uma situação passada que gostaríamos de esquecer.

Resumindo: as minhas preocupações são mínimas em relação as que meu pai suportou, as minhas são meio que irracionais, pois dizem respeito a questões que nada posso fazer para mudá-las, cabe a mim apenas uma alternativa :aceitar. O tempo é senhor absoluto e não aceita intervenções em seu percurso. As preocupações que ele teve tinham total sentido ,pois poderia refletir e influenciar o meu futuro e minha vida como um todo.

Quantas vezes eu sei que meu pai chorou por não ter condições de me dar o sapato ,a roupa ,o brinquedo desejado. Hoje choro por não entender porque o tempo leva a vitalidade, as forças de alguém tão especial;

Ser pai deve ser uma missão árdua e difícil ,mas ser pai do pai da gente talvez seja ainda mais ,pois requer uma certa dose de resignação e aceitação..

Parabéns, “Velho Guerreiro”

Abigail Roha
Enviado por Abigail Roha em 20/03/2018
Código do texto: T6285231
Classificação de conteúdo: seguro