CAÇANDO CARANGUEJOS

CAÇANDO CARANGUEJOS.

Tudo começou quando, após uma sofrida vaquinha, juntamos uns cem reais em dinheiro de hoje e compramos um barquinho, se é que pode se chamar aquilo de barco. Nada poético esse barquinho, nada a ver com o barquinho musical. Era de tábuas pintadas de preto, muitas quebradas, unidas com pregos, de comprimento dois metros. Os espaços vazios competiam com a estrutura, o que o impediam de flutuar. Após efetuar o pagamento, conseguimos arrastá-lo através do mangue até próximo ao fundo do São Vicente Praia Clube com imenso esforço para um bando de moleques de doze ou treze anos. Cravamos um pedaço de caibro na lama até apresentar condições de “atracar”. Amarramos aquilo no caibro. Manhã seguinte, munidos de cordas e piche (cimento asfáltico de petróleo, CAP, eu aprenderia anos depois, no curso de engenharia), começamos a preencher os vãos entre as tábuas com corda e piche e, aos poucos fomos calafetando o barco. Uns três dias desse trabalho, esvaziamos o interior da nossa aquisição e, para espanto de todos, o nosso galeão espanhol flutuou! Foi um êxtase e um êxito! Fizemos uma brincadeira quando acabou e saímos melados de piche. Fui direto à barbearia do Benézio (Ebenezer, filho do seu Brígido, pastor evangélico), com o cabelo emplastrado de asfalto. Solução: rapei a cabeça, ficando careca. Para minha mãe não ver, entrei no banheiro e tomei um banho. Mas minha mãe preta Alzira, estava dando risada após me ver com o novo visual e contou para minha progenitora. Dona Zeny ficou possessa. Abriu a porta do banheiro na pancada e, de chinelo em punho, partiu para cima de mim. Como eu já era grandinho, segurei seus braços para não apanhar, a toalha escorregou para o chão. Formou-se uma cena hilária: minha aos berros para largar seus braços e eu, pelado, segurando-a. De repente, soltei os braços dela e sai em disparada escada acima. E mami na captura! Encurralou-me em um canto e, após várias chineladas, danou a falar o absurdo que eu havia feito: cortar o cabelo todo. Voltemos ao nosso barco. Tratamos de outros detalhes. Para remos montamos pedaços de tábuas pregados em sarrafos, colocamos tábuas atravessadas, uma na proa, outra no meio e a terceira na popa servindo de bancos. Umas três latas para tirar a agora pouca água e pronto. Começamos a navegar pela maré do portinho de São Vicente. Onde hoje é a Ponte do Mar Pequeno ficava a coroa, região mais rasa que aflorava nas marés baixas, e nós íamos remando naquela tosca embarcação, encalhávamos na coroa e tome banho de mar até a maré encher. Aos poucos fomos ganhando confiança e nos aventuramos a ir mais longe chegamos ir até a Ponte do Barreiros, mais de cinco quilômetros do nosso “atracadouro”. A região do Mar Pequeno de São Vicente foi amplamente explorada por nós, moleques metidos a navegantes. Íamos caçar caranguejos, técnica que não consegui aprender. Após uma trovoada, dizia-se , que os caranguejos saem de suas tocas, que são buracos escavados junto às raízes das árvores de mangue (em São Vicente mangue-vermelho e siriúba). No dia seguinte às trovoadas, saiamos para ao mangues.

Quando você desce do barco após atracar e entra no interior da mata afundando os pés na lama, o silêncio se faz presente, a seguir escutamos uns estalidos, não sei se dos caranguejos ou do balanço das árvores, mas até hoje lembro e volto a sentir uma sensação de paz da natureza. Aos poucos a vista vai-se acostumando com a claridade ambiente, bem menos intensa que a luz do sol, e consegue-se ver uns pontos brancos se locomovendo e sumindo da superfície, entrando nas tocas. São as garras dos caranguejos. A maioria dos caranguejos possui uma garra maior que a outra e as fêmeas escolhem seus pares pelo tamanho das mesmas. Ai que entra a perícia do catador de caranguejo. Tem que observar o bicho e lembrar em qual toca ele entrou e em qual posição sua garra maior estava. A seguir, colocar a mão sem medo e catar o bicho sem sofrer um beliscão que pode arrancar parte de um dedo, sem contar à dor que provoca. Após ser “beliscado” várias vezes, tomei consciência que não me tornaria um exímio catador de caranguejos. Arrumei uma luva de lixeiro, feito de lona grossa, e metia a mão em qualquer toca sem medo. Menos de cinco minutos andando no mangue enterrando as pernas até acima dos joelhos e deitando-se para catar os bichos você ficava totalmente cinza-escuro. Uma hora depois, já com uma boa quantidade de caranguejos nos sacos, embarcávamos e retornávamos para casa após um banho de mar que tirava boa parte da lama do corpo. Todo mundo na casa do Zé Guardinha, que tinha um grande terreno vazio ao lado, e toca a lavar os bichinhos para coloca-los numa lata de 20 litros com água e sal. Depois de ferver até o ponto, os caranguejos eram colocados em um tabuleiro de caixotes. O banquete estava servido, a molecada ia quebrando as cascas com os dentes e devorando a carne. Dizem que o caiçara verdadeiro come peixe cuspindo as espinhas pelo canto da boca e deglutindo a carne limpinha. Era assim que a gente fazia com os caranguejos.

Paulo Miorim 20/03/2018

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 20/03/2018
Reeditado em 10/10/2020
Código do texto: T6285446
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