Razão Para Ser Esquerdopata

Era preciso caminhar muito, suar. Sob o sol, os cheiros-verdes murchavam rápido – quando ficavam murchos, quase ninguém queria compra-los.

Eu, andarilho, subia e descia ruas. Entre um beco e outro, da tortuosa Rua das Tripas, gostava de apreciar as águas do Rio Marathaoan de Barras – um convite ao frescor e a liberdade de um rio que se oferecia aos meninos pobres e ricos da cidade - democraticamente!

Durante as caminhadas, vez em quando, recebia um escárnio de alguém que se autodenominava politicamente correto: “Sai pra lá, menino fedorento; vai tomar banho” - A dor era pouca na minha alma de criança – dor anímica de menino cedo passa. Para esquecer as palavras de segregação, “timbugava” na alegria das águas.

Nessa peregrinação, quase diária, uma alma bondosa revigorava meus sentimentos de criança perdida toda vez que eu chegava à sua porta para vender as hortaliças: “Trabalhe, mas não deixe de estudar, Carlinhos; você é um menino inteligente” – dois dedos de prosa, lá ia eu de novo, rua abaixo, rio acima, rio abaixo, rua acima...

Estudar!?

As palavras daquela senhora me confortavam. Por instantes, eu esquecia minhas amarguras de menino sujo e segregado numa cidade dominada pela maioria das chamadas “castas sociais barrenses”.

Cidade de um único clube social destinado às famílias ricas da burguesia local, cidade de casarões suntuosos na sua parte alta – alardeados pelas convivências sociais das classes mais abastadas.

As famílias pobres habitavam nas pontas de rua, nos arredores do mercado, na rua do prostíbulo, no Bairro Piquizeiro, nas sobras de terra que as águas do Rio Marathaoan doavam em suas épocas de seca... Durante os períodos chuvosos, a natureza reclamava sua posse!

Menino pobre vendendo cheiros-verdes de porta em porta simboliza bem o quadro de um sistema de classes, ou seja, um sistema onde um grupo é dominante e o outro é dominado. Quadro de filhos de proletariados das cidades de interior pintado para servir a maioria das famílias abastada - sem esquecer aquele no qual é pincelado uma mãe lavando trouxas de roupa para deixar a sociedade mais limpa e mais cheirosa...

"O proletariado não deve ir além daquilo que é aceitável para a burguesia, deve seguir uma política de conciliação com ela?" - Menino pobre, estudar isso pra quê?!

Rebelde, por muito tempo, fiquei fora de uma sala de aula; mas fui “amansado” para sentar numa cadeira escolar – pouco a pouco, fui entendendo a importância dos conselhos daquela bondosa senhora.

Finalmente, passei a compreender as sandices religiosa, politica, intelectual... Todas que culminam com a segregação social.

Ainda hoje, guardo a lembrança daquela bondosa alma – agora, literalmente celestial – que um dia ensinou-me que a alegria de um menino pobre não está apenas nas águas de um rio, está, principalmente, nas correntezas de um livro que o leva a viajar pelo mundo e o faz entender as nossas diferenças sociais, mesmo entre risos, polêmicas e caçoadas.

Muitas águas já se passaram, muitas ainda virão. Continuarei “proletário” e distante do pedantismo e da intolerância da maioria das “burguesias” segregadoras.

Sobre a bondosa senhora? Que ela continue sendo a Padroeira das Causas Impossíveis - Tia Rita!

Kal Angelus
Enviado por Kal Angelus em 09/04/2018
Reeditado em 18/10/2019
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