CADEIA ALIMENTAR

Estava eu com vontade de comer peixe. Cansado dos mercados e seus frescos ou enlatados prontos para consumo, fui a uma venda de peixes vivos. No tanque, escolhi do cativeiro aquele que mais me agradou, o vendedor, um rapazote, o pegou com uma rede e rapidamente lhe deu um golpe com uma ferramenta de claro uso de abate, da qual, desconheço o nome. Naquele instante pensei que meu jantar tinha ido por água abaixo, pois um grande remorso me invadiu. De forma planejada contribuí com a morte de um ser. Silenciosos, peguei meu pacote e fui embora. O peixe nos seus últimos suspiros pulava na sacola, movimentos involuntários de resistência, porém não existia firme linha para se segurar. Meu coração igualmente pulava, sabia eu da necessidade, um só haveria de viver.

Em casa, me apressei a arrumá-lo, escamar, estripar e todo o restante do processo. Eu sentia-me um pleno maníaco assassino com a mão num corpo frio. A vida rápida e pronta do cotidiano dos açougues e ilhas de congelados nos tiraram o horror da morte de outros seres com intuito de sobrevivência própria. O peixe com seus espasmos involuntários insistia em algo que não tinha mais volta, já estava morto, e contraditoriamente, recusava-se de algum jeito a deixar-se ir totalmente. Vingativo, mordeu meu dedo, desleixo meu durante a preparação. Quase xinguei, contudo não o fiz, sentia-me merecedor de tal punição.

Percebi que sou grato pelo tempo que vivo. Deus me livre ser preciso eu matar uma vaca, um porco, uma galinha, outro peixe. Estou seguro, pois não preciso sair à caça todos os dias, ter que matar consciente e regularmente. Gosto da morte que não suja as minhas mãos, da ilusão dos pedaços fatiados e pendurados em ganchos, que não confessam qualquer traço de vida escondida ou preexistente. Estão abatidos, portanto não contam história, e isso egoistamente me basta, uma vez que asseguram a minha sensação de inocência. Matar para comer é necessidade, mas ter essa experiência, assim, nascida de um simples desejo para o jantar é amedrontador, é confirmar o que sabemos desde sempre: a vida sustenta-se sobre os ossos dos mortos. É questão de tempo até eu ser o abatido, ser comida de algo. Parte do ciclo em contínuo processo.

De volta ao conforto e comodidade meus invizibilizantes naturais, olhei o peixe pronto na panela. Estava com uma cara maravilhosa. Se o comi? Claro, custou caro. Em mim não restava qualquer lembrança do prévio remorso. Não há moralidade na fome. Acabou que o peixe rendeu um prato delicioso e uma crônica de brinde.