Eu encontrei um amigo

Tenho uma amiga que um dia comentou: "Oswaldo conversa até com o poste!" Se eu conhecer a língua do poste, certamente estarei discutindo com ele sobre tensão e energia. Poderei ficar apreensivo e cansado. Um pouco de luz não fará mal. Coisa de doido... Sou assim mesmo. Comecei pelo comentário da Eliane, grande leitora de Adélia Prado e uma das melhores professoras desse mundo onde perambulo. Já deixei escapar um pouco do que falei com os postes das cidades onde andei. Prometo não escrever tanto sobre minhas andanças. Vou deixar aqui embaixo registrado das palavras trocadas com um ilustre desconhecido de séculos de um mundo inteiro.

O espaço era a estrada! O tempo era a tarde. Talvez um pouco tarde para alguém com quase meio século de caminhada nas vias intrincadas dessa teia chamada vida. Sou meio aranha, meio inseto. Predador e presa. Caio nas armadilhas perigosíssimas das letras e caço a atenção de quem passa por perto. Foi o ocorrido nesse dia de segunda-feira de maio um dia após à comemoração dos cento e trinta anos da abolição da escravatura nas terras do meu país. Ainda estamos presos em cadeias invisíveis de desordem, decadência, exploração e corrupção. Não há açoite pior!

E assim subi no ônibus, navio negreiro no solo de gente de todas as cores e de todos os valores. O capitão não era o chefe da esquadra. Era também um dos cativos. Eu o cumprimentei automaticamente sem saber de onde era. Descobri com o tempo se tratar de alguém da mesma origem. Nascemos em lugares diferentes com histórias semelhantes por isso a conversa fluiu indiferente aos buracos do caminho. De repente, diminuição da velocidade. Um carro destroçado atrás doutro ônibus. Talvez alguém tivesse deixado de viver. Não sei se a tragédia foi consumada. As outras histórias estão em curso. Entre elas a minha. Navegar é preciso. E precioso!

Seguimos ao Norte. Pela terra. O mar ficava a oeste em velhos e novos portos de rosas e pedras onde madames aguardam seus amores. Havia águas escondidas ao sul. Os mares orientais são mais distantes. Seguimos em frente. Queríamos uma pedra bonita. Garimpar para garantir a liberdade.

Procurávamos tesouros no que dizíamos e continuamos a jornada. Dois diários de bordo simultâneos. Dois leitores em movimento. Tecelões de palavras enquanto a nau avança. A tripulação quieta. Só o comandante e eu falávamos. Havia pausas. Alguns eram deixados para trás no percurso. Mais vidas para sempre anônimas das quais nunca soube a voz. De que tribo eram? Quais as nações? Falávamos a mesma língua?

Eu aprendi a ser poliglota durante minhas viagens ainda sem sair do lugar. Vejo nesse condutor a mesma capacidade de traduzir no novo que ouve o precioso de outras épocas sempre melhores, pois o passado parece feito de feitos gloriosos e ricos. Vivemos na travessia a experiência de conversar francamente e sem freios sobre o simples e raro e caro para ambos. O tempo passou e não senti a paisagem se modificando ao som da nossa conversa. Falávamos e as coisas aconteciam nos lugares onde já havíamos pisado. Pairavam no íntimo da nossa imaginação inacreditavelmente vívidas e rápidas como os relâmpagos numa tempestade de verão. Ele me contou sobre sua família e eu sobre a minha e construímos outra família grande onde cabia o mundo todo. Ele se chamava José assim como meu irmão. Tinha a universalidade, a nobreza e simplicidade desse nome tão antigo e caro para nós cristãos.

Já éramos velhos amigos numa conversa animada e respeitosa ao mesmo tempo, com aquele tempero de bom senso e educação tão escasso nesses tempos de instantâneas grosserias.

O tempo não foi muito gentil conosco. Chegou a hora de descer e buscar o garoto no colégio. Não sei mais se algum dia voltarei a ver esse novo amigo, mas espero continuar ouvindo sua voz noutras pessoas de igual valor e princípios. Enquanto isso e para isso deixo aqui o meu registro. Em breve, ele vai se transformar em alguém preso nos fios do tecido de um texto, porém livre para caminhar poeticamente pela prosa.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 17/05/2018
Reeditado em 17/05/2018
Código do texto: T6338567
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