NO TRANSATLÂNTICO

Início dos anos setenta. Selma lecionava inglês no Elefante Branco, escola pública de ensino médio, em Brasília. Lá onde, no mesmo turno, eu também lecionava biologia. Nossas grades de trabalho apresentavam muitas “janelas” – aqueles tempos vagos entre uma e outra aula. Na maior parte, coincidentes. Matávamos o tempo proseando na sala dos professores, entre um café e outro.

Selma, nordestina de sotaque carregado de humor, era fantástica em suas analogias. Tinha sempre um caso interessante para contar. Se não fosse sobre sua empregada meio surda, inculta e de raciocínio a desejar, falava sobre suas andanças pelo mundo acompanhando o pai, diplomata de carreira e de família endinheirada.

Deixava clara sua predileção por viagens de navio. Essa mamata acabou quando decidira contrariar a família e se casar com um bancário. A partir daí, adotou vida de gente comum e de professora raladora.

Isso não a impedia de valorizar lembranças de seu passado. Invejavelmente culta, falava fluentemente inglês, francês, espanhol e italiano.

Contou-me. Certa feita, ainda solteira, acompanhava o pai em viagem a um país oriental (nome omitido). Pararam por três dias em Paris, para minimizar o impacto da diferença de fuso horário e para tarefas ligadas ao oficio protocolar.

Seria a primeira viagem de Selma para as bandas do oriente. Como hábito, tratou de ler sobre o país. Clima, língua falada, alimentação etc.

Sobre hábitos sociais e religião ficou sabendo ser costume local venerar ratos. Grande parte da população cuidava carinhosa e respeitosamente de imensas populações de ratos em prédios abandonados, ajoelhando-se e curvando-se a eles em profunda reverência. Soube também que, de tempos em tempos, os animais, em superpopulação, praticavam suicídio coletivo jogando-se na água em auto-afogamento na beira do cais.

E ainda que, nos encontros acidentais de pessoas desacostumadas a tais hábitos, não eram bem vistas manifestações de aversão, medo, nojo ou desprezo pelos roedores. Mesmo em restaurantes, hotéis, clubes e outros ambientes. Maltratar ou matar ratos representava uma ofensa social.

Deus me livre de pisar num lugar desses! Exclamara a si mesma, em crise de soluços e arrepios. É que Selma tinha verdadeiro pavor de ratos. Não suportava os ver sequer em fotografia.

De imediato, pediu ao pai para excluí-la daquela viagem. Explicou a razão e foi compreendida, sem dificuldade.

O pai ofereceu-lhe, como alternativa, o retorno a bordo do “Eugênio C”, transatlântico super confortável. A temporada dos cruzeiros marítimos começava no Brasil.

Embarcou em Marselha. A bordo - sozinha na cabine - seu pensamento não largava do pai. Imaginava-o num teatro de horrores com ratos passeando sobre seus pés no restaurante, a competir por espaço em sua cama etc.

Não raro acordava em pânico no meio da noite, sob pesadelo de batalhão de ratos em fúria agressiva.

A escala do “Eugenio C” nas Ilhas Canárias não lhe foi das melhores. Selma desceu para conhecer o casario medieval do centro histórico da cidade. Torceu o pé fugindo às carreiras de uma ratazana vista a remexer lata de lixo de um restaurante. Reembarcou pulando num pé só, até ser atendida na sala de emergência médica, ter o tornozelo engessado e ganhar um par de muletas.

Diferenciada pelo gesso, nada mais fazia além de dar explicações sobre o acidente. Fosse à mesa de refeições, no café do convés e por onde circulasse. Sempre acrescentava seu pavor a ratos.

A propósito, a conversa entre viajantes veteranos nessa rota era sobre Tenerife e seus roedores. Ali, os navios sempre ganhavam o embarque clandestino de alguns ratos. Por mais que se redobrassem a vigilância no embarque de mantimentos e cargas. Conversa que só fazia aumentar o medo de Selma e o arrependimento daquela parada.

Como o azar nunca anda sozinho, veio outro logo em seguida. Ao entrar em sua cabine, Selma deparou com um rato. Queria gritar, mas a voz não saia. Tentou subir na banqueta de apoio a malas. A perna engessada dificultava movimentos e agilidade. Dois passos para trás, caiu e bateu-se contra a porta com cabeça, gesso e muletas provocando um enorme estrondo.

O pessoal de apoio de bordo e vizinhos de cabine logo chegaram, abriram a porta e a removeram. Perguntavam sobre o que ocorrera, Selma afônica só mexia com a boca e respirava ofegantemente. Apontava o dedo a esmo. Dois seguranças investigavam o local em busca de possível agressor. Um da brigada de incêndio inspecionava os equipamentos elétricos. Enfermeiros com maca logo a conduziram à sala de primeiros socorros. Um verdadeiro pandemônio sem explicações.

Assim que pôde, Selma informou se tratar de um rato em sua cabine e de sua ojeriza a esses animais. Um bem humorado escritor português a bordo parafraseou Horácio em voz alta: “A montanha pariu um rato”.

Por mais que os tripulantes tentassem colocar uma pá de cal no ocorrido, ele virou foco de comentários para o resto da viagem. A “Eugenio C”, ao contrário de Selma, fê-lo definitivamente apagado de seus relatórios.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 21/05/2018
Código do texto: T6342496
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