DISTORÇÕES DO VERNÁCULO

Nosso vernáculo, por natureza, permite variações. Algumas são até bem vindas porque contribuem para a expansão vocabular e, consequentemente, uma comunicação mais inteligível. Outras são verdadeiras distorções que borram a cultura para implantar asneira. Eis um exemplo ilustrativo.

Num recente programa televisivo de premiação, a candidata - gente comum do povo - deveria optar por uma de duas respostas à pergunta mais ou menos assim formulada: “onde Platão, na Grécia antiga, discutia e ensinava filosofia?” As alternativas eram: 1) na academia e 2) num grupo escolar.

O apresentador, ao esclarecer previamente o formato do programa, informara que aquele jogo tinha a pretensão de contribuir para a soma cultural, com perguntas de bom conteúdo. Mas, para não constranger o participante em sua limitação de conhecimentos, sempre disponibilizaria duas respostas a cada indagação: uma obviamente correta quando contrastada com a outra, geralmente estapafúrdia.

Pois não é que a candidata errou ao optar pela segunda alternativa. Com isso, colocou Platão ensinando e discutindo filosofia num grupo escolar! Mas que não se arrepiem com o limite cultural da candidata participante. O termo “academia”, faz tempo, deixou de ser entendido pelo cidadão comum e – bem provável – até pelos pretensos intelectuais, como ambiente de aprendizagem, de troca de conhecimentos e ideias, de reunião de intelectuais e coisas do gênero. Para o povão, “academia” nada mais é que aquele salão da modernidade, repleto de aparelhos para exercício de ginástica com esteiras motoras, bicicletas que não saem do lugar, pesos para levantar e, sobretudo, ambiente bastante propício a “paqueras”, pela atratividade das frequentadoras em suas vestimentas de malha fina plenamente coladas ao corpo, muitas vezes, a disfarçar celulites. Longe de ser academia, é lugar onde não se ensina nada; talvez até se desvirtue. Está mais para “peccatum mens in corpore sano” (mente pecadora em corpo são). Ainda assim, se costuma dar o título de professor a seus funcionários e instrutores.

Outra distorção vocabular irritante para os nortistas e nordestinos é a designação de “tapioca” para o “beiju”, produto que se faz com ela. Ora, beiju é comida de origem indígena, assim chamada (não há outro nome) e reconhecidamente presente na culinária dos índios brasileiros, haja tempo. Quem não faz ponto nem desfila nos bobódromos dos “shoppings centers”, reconhece tapioca apenas como ingrediente, em forma de massa ou farinha, para se produzir beiju, cuscuz, biscoitos, mingau etc.

Diga-se, a bem da verdade, que esse produto, preparado e servido em chiques “ilhas” de shoppings e hotéis multiestrelados, é apenas um dos muitos tipos de beiju feitos com a massa ou farinha de tapioca. Nas tribos indígenas mais isoladas – especialmente as amazônicas - o beiju é assado sobre uma grande pedra polida e bem aquecida por fogueira. Lá, ninguém o chama de tapioca!

No Nordeste, mormente na Bahia, são populares os beijus secos e crocantes. Assados e cortados em pequenos nacos, feitos com farinha de tapioca e recheados de coco ralado. Igualmente populares são os beijus molhados com leite de coco, feitos a partir de tapioca fresca ou com puba, que é a tapioca azeda. A farinha de tapioca, doce ou insossa, com ou sem coco, também é comum nas mesas nordestinas. É misturada ao leite quente no desjejum. Para não ser injusto com nossas papilas gustativas, vale lembrar outra iguaria fantasticamente saborosa na mesa de quem sabe diferenciar tapioca de beiju: o cuscuz de tapioca com coco, no Rio chamado de cuscuz baiano.

Além disso, é bom distinguir tapioca de “goma de mandioca”. A goma é feita partir do caldo da mandioca ralada, encharcada, espremida, coada e deixada a repousar. Remove-se a água sobrenadante que, se deixada a fermentar, produz o tucupi, muito usado na culinária amazônica. A massa assentada é colocada a secar para ser pulverizada e, então, receber o nome de amido de mandioca ou polvilho. Saborosas iguarias usam o polvilho como ingrediente: pão de queijo, sequilhos, biscoitos e os não menos famosos beijus de goma.

Já a tapioca é feita da mandioca ralada, ainda em flocos, o que preserva sua riqueza em fibras. Os flocos da mandioca ralada – geralmente os mais finos - se desidratados em tachos mornos, resultam em grânulos esféricos, pequenas pérolas, que é a farinha de tapioca.

Por fim, vale enfatizar: chamar-se o produto final (beiju) de seu componente (tapioca) equivale a chamar o pão de queijo, de polvilho; o queijo, de leite; o vinho, de suco de uva e o sushi, de arroz.

E o que é ruim ainda pode piorar. Tanto a “canjica” como o “mugunzá” são comidas típicas e de indubitável origem nordestina, onde se as consome como hábito. Seus nomes foram apropriados de linguagem africana, trazidos por escravos, tal como acarajé, abará, vatapá, caruru e outras. Por que não conservar seus nomes originais? Parece que, só para confundir, os sulistas resolveram denominar “canjica” o que é mugunzá na sua origem. Para horror geral dos nordestinos, deram vários nomes malucos à canjica. Onde não se tem o hábito de a consumir regularmente - e nem é bem conhecida - chamam-na de “cural”. A inimaginável falta de criatividade capixaba rebaixou-a à condição de “papa”.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 21/05/2018
Código do texto: T6342504
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