DURVAL E DORIVAL

Quem conheceu a dupla Durval e Dorival em Brasília ri sozinho enquanto curte a saudade. O exercício íntimo da lembrança dos dois juntos, sentados à mesa na praça de alimentação do Conjunto Nacional Brasília, traz de volta a nossos dias os aposentados DD’s e toda sua eterna graça.

Mergulhado nessa convivência virtual, perdendo o foco no horizonte, fica impossível resistir a, pelo menos, um discreto e silencioso sorriso.

Durval, amazonense escolado no Rio, frequentador inveterado do Jóquei. Mais tarde, tornara-se um afável e divertido brasiliense. Dorival, mineiro de Paracatu, fala mansa, chegado ao pão de queijo. Não dispensava, sempre que podia, uma turnê por Las Vegas e por outras plagas onde rodasse roleta e deslizassem cartas no pano verde.

Com quase 80, foram-se, ambos, para o além, há mais de década e meia. Primeiro um, depois o outro, a chamado.

Sentavam-se, cerveja ou uísque com gelo, e partiam para o costumeiro diálogo permeado de risos. Não contavam anedotas. Faziam caricatura de fatos verídicos, alguns recentes outros remotos. Por vezes, eram, eles próprios, os protagonistas dos casos. Dificilmente repetiam a mesma história. Guardavam um inesgotável arquivo. Incrivelmente, Durval conseguia rir mesmo com sua cara sisuda. De vez em quando um levantava. Era para ir ao banheiro ou para um breve alívio às nádegas já descarnadas pelo tempo.

Por ali passavam e cumprimentavam conhecidos e amigos, sempre convidados à conversa. Miguelzinho, da Câmara, era parceiro e vítima eventual. Ria, sofria na língua dos dois, mas, divertia-se junto. Carlos Coé, vítima preferencial da dupla, às vezes, aparecia. Não gostava da “zoada” feita à custa de suas desventuras. Mas, dava motivo. Sua vida errática, as tentativas de enganação a incautos – especialmente estrangeiros - e seus entreveros com a sogra, causavam-lhe, vez por outra, hematomas e engessamentos diversos, explorados à exaustão pela dupla.

Durval tinha uma casa em Caldas Novas/GO, para onde ia e acolhia amigos durante feriados prolongados. Sua maior diversão era o cassino. Naquele ambiente, todos se conheciam e festejavam o reencontro. “De perdição” - como dizem uns e outros – ali, só o dinheiro das apostas. A atmosfera respirada mais se assemelhava a clube de fraternidade.

Foi retornando de Caldas para Brasília que a dupla protagonizou um dos mais divertidos de seus casos. No acostamento da estrada, costumavam parar à sombra de um pequizeiro, alguns metros adiante da barraca de Adelaide, baiana, sempre de branco, adornada com babados, colares e pulseiras. Eram fregueses tão freqüentes que a baiana já lhes devotava afeto, perguntando nominalmente pelas esposas, parentes e amigos. Compravam polvilho (goma) para Dorival fazer seu “legítimo” pão de queijo. A tenda de Adelaide tinha cobertura simples, montada apenas nos fins de semana. Lona de caminhão apoiada sobre varas. Ainda que brevemente temporária, ostentava num banco de madeira elevado – tipo altar - imagens de São Jorge, Preto Velho e Yemanjá, Odoyá. Numa dessas paradas, Durval saltou sozinho para a compra. Adelaide estranhou e perguntou pelo seu Dorival.

- Morreu, disse Durval. Foi pro outro mundo.

Adelaide se benzeu, quase às lagrimas, alisou a cabeça da imagem de São Jorge, rezou baixinho, concluiu a venda e Durval seguiu viagem. Mentira de Durval! Dorival, ressaqueado, aproveitava para dormir no banco traseiro do carro.

Quinze dias depois, fazendo a mesma parada, geralmente domingo à tarde, desceram ambos do carro, sem trocar conversa. Maria José, esposa de Durval manteve-se, como de praxe, no banco dianteiro do carona.

Antes do pedido, Adelaide riu para Durval e disse com ar de alegria.

- O senhor mentiu para mim de brincadeira; seu Dorival não morreu! Durval, de imediato, replicou:

- Como não?

- Olha ele aí! Ela apontava, com certa dúvida.

- Realmente você é espiritualista e tem grande mediunidade. Consegue ver pessoa que já morreu? Fantástico! Eu não tenho esse dom.

Dorival percebeu a molecagem e passou a bancar o fantasma. Calado ficou. Fixaram-se, um no outro, os olhares de Dorival e Adelaide. Inspirado no filme “O Sexto Sentido”, Durval dava cores ao surrealismo da cena:

- Se a senhora pode ver o Dorival, diga àquele pilantra que ele morreu me devendo vinte mil reais e a viúva dele não quer me pagar. E pior: ela ainda teve a cachimônia de me pedir ajuda para custear o enterro.

Dorival gesticulava negativamente com o dedo, mas não falava nada. Também não ria. Mantinha a conveniente postura de um morto ambulante.

Adelaide ainda argumentou gaguejando que Dorival saíra do carro de Durval e deixara a porta traseira aberta. Durval olhou para o carro, nada falou e fez as despedidas de praxe. Dorival discretamente entrou no carro pela porta logo fechada por Durval. Deitou-se para não mais ser percebido. Pelo retrovisor, dava para ver Adelaide irrequieta andando de um lado para o outro, abraçada à imagem do Preto Velho e se benzendo continuamente. Os dois, mais Maria José, divertiam-se às gargalhadas, lembrando as expressões faciais de Adelaide.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 15/06/2018
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