CAUSOS D’ÁGUA - O BICADEIRO

Alfredo faz parte das agradáveis pessoas que conheci. A eventualidade de nossos encontros em Belém nunca nos permitiu firmar uma boa amizade.

Contudo, fazia questão de ouvir suas histórias. Às vezes, me ocorria a vontade de indagar sobre a veracidade das mesmas. Mas, de tão interessantes, se não fossem, mereciam ser verdadeiras. Geralmente, eram “causos d’água” que se passavam nos igarapés e remansos amazônicos.

Alfredo, agrônomo, trabalhava como extensionista do Estado do Pará, junto a pequenos produtores ribeirinhos. Sem profundo saber teórico, conhecia, como ninguém, as “manhas” do aproveitamento de várzeas para a produção agrícola. Na companhia de um experiente navegador, deslocava-se naquele emaranhado de águas a bordo de um pequeno catamarã motorizado. Embarcação simples, mas coberta e suficiente, inclusive, para pernoite. Por vezes, Alfredo viajava sozinho. Mas, o que impressionava nesse agradável cidadão era sua capacidade de transformar seu trabalho, suas intervenções técnicas, em contemplação poética.

Contou-me, certa vez, que se encantou com a beleza da filha de um ribeirinho. Moça aparentando algo em torno dos trinta anos. Tipo indígena, de cabelos longos e negros. Imersa do pescoço para baixo, foi quem lhe dera boas vindas quando, já no fim do dia, chegava àquela várzea pela primeira vez. À luz de fifó, cumprimentou o chefe da família. Um caboclo malmovente, abatido pelas tantas malárias que sofrera. Por ali ainda se guardavam hábitos indígenas, principalmente quanto ao escasso vestuário. Do casebre sobre palafitas, pôde ver, sob a lua cheia, a silhueta da moça ao emergir formosa de corpo inteiro. Avião, não! Submarino!

Ao “velho” e sua esposa explicou-se como extensionista e justificou sua chegada fora de hora, como acidental. Enfrentara uma inesperada e demorada tempestade. Indagou sobre a várzea, sobre seu aproveitamento para plantio. Não sentiu firmeza nas respostas. Dava a impressão de que o “velho” pouco agia e menos ainda se inteirava da atualidade. Retomaria a conversa no dia seguinte, observando diretamente a várzea. Voltou ao catamarã, onde preparou e bebeu guaraná ralado na língua de pirarucu. Comeu beiju ofertado pela esposa do ribeirinho, com lascas de peixe seco. Matou o resto da fome com pupunhas cozidas trazidas no “kit de sobrevivência”. Contemplava a lua sobre as águas e não tirava do pensamento Yara, nome que atribuíra por conta própria à dama dos cabelos negros.

Pegou seu violão e cantou, dentre outras, a “Canção do Vento”. Imaginou Yara na janela do casebre ouvindo sua solitária serenata.

O repelente já não mais dava conta do ataque dos carapanãs. Recolheu-se ao apertado aposento, devidamente protegido por tela, e dormiu até o dia clarear.

Iniciou o dia com um bom e saudável mergulho. Aproveitou para um banho com sabonete a fim de remover o ranço do repelente à base de óleo de peixe.

Não demorou a receber nas águas a companhia de Yara. Ofereceu-lhe sabonete e até ousou ajudá-la a ensaboar as costas. Algo mais que uma simples contemplação passou a dominar sua alma. Seria ela sua futura esposa? Ou faria parte das muitas que lhe ajudaram a romper a noite com alegria? Lembrou-se das histórias amazônicas. Daquelas que contam fantasiosas atrações, logo reveladas como encantadoras armadilhas fatais.

Resolveu voltar às raízes de agrônomo extensionista. Ainda que de longe, percebera na várzea pés de milho, arroz e feijão em emergência. Mais acima apareciam pés de mandioca, cana e batata doce. Estranhou aquele plantio, tão regular, como obra de um “velho” com dificuldade de locomoção e de raciocínio. Indagou quem fizera aquele serviço.

O “Bicadeiro”, respondera-lhe Yara. Um pássaro de bico comprido que, durante a noite, passa pela várzea fazendo buracos e plantando as sementes. Essa seria mais uma fantástica história que nunca ouvira sobre as águas da Amazônia. Perguntou se alguém já vira esse pássaro.

- Sim! Eu sou esse pássaro! Respondeu, esclarecendo que seu pai fizera de tudo para torná-la agrônoma. Yara chegou a estudar dois anos de Agronomia em Belém. Foi trabalhando duro para sustentá-la e alcançar esse sonho, que o “velho” adquiriu malária e outras doenças degenerativas. Parcialmente paralítico e vendo seu sonho acabado, tentou suicídio tomando veneno de formiga. Foi aí que Yara interrompera seus estudos e retornara à casa dos pais.

Para seus pais, inventara essa história. Acrescentara que fora obrigada a se casar com o “Bicadeiro” e nunca se deitar com outro. Se o “velho” morresse ou insistisse em mandar Yara de volta à faculdade, ele não mais faria seu serviço.

História que Yara passara – ela mesma – a nunca duvidar!

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 15/06/2018
Reeditado em 15/06/2018
Código do texto: T6365378
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