O tempo cuidou de perdoar

Não deixe de perdoar os seus inimigos - nada os irrita tanto.

Oscar Wilde

Como foi inocente o lambe-lambe, a cabeça coberta por uma velha toalha roubava dele toda a visão periférica, e mais ainda a capacidade de ver o futuro.

O fato se deu há tanto tempo atrás, atrás até mesmo daquele tempo usado para se iniciar histórias infantis, e um nebuloso ancestral levou sua amada à praça pública, bem junto ao coreto, para uma foto para a posteridade.

Era um barco clandestino, era um amor clandestino, e, sobretudo, era uma foto incriminadora e clandestina também, foi quando o lambe-lambe gravou, para sempre, aquele que seria o seu melhor, e mais duradouro, trabalho, a foto ficou linda.

O ancestral, que de tão antigo serviu de semente para aquela árvore genealógica, guardou a foto dentro da sua bíblia de cabeceira. O intento do velho era ter uma lembrança de sua amada bem perto de sua alcova, que ele não dividia com o seu amor, mas com a sua esposa; e o improvisado porta-retrato tinha, por propósito, atenuar um dos sete pecados originais cometido por uma pecaminosa semente genealógica.

O tempo foi passando, as testemunhas também passaram, e alguém, sete, ou oito das gerações seguintes, descobriu a foto, tão cuidadosamente guardada dentro do antigo Antigo Testamento, e aqui foram necessários dois “antigos”, para datar aquela foto, que, talvez por milagre, ainda não estava amarelada pelo tempo, sim, ainda sem icterícia.

Ninguém podia afirmar quem teria sido aquela musa, aquela diva da foto, linda, mas de diluída identidade, e de suspeita ocupação na árvore daquela família.

A modelo era linda, os elos de afinidade diáfanos, e com uma bela moldura, ela passou a decorar a sala, tudo em perfeita harmonia com a decoração do cômodo.

O Tio Zico, viciado em jogo do bicho, sempre pedia uma orientação, um palpite para o jogo do dia; a prima Zoraide, beata solteira, contra sua própria vontade, usava daquela foto, muito mais do que usam solteiras apelando para Santo Antônio; a vovó Dinha sempre chorava, olhando com saudade, não sabia explicar de quem, para o centenário quadro na parede.

O Tio Zico jogava todos os dias, e já ganhou uma, ou outra vez; a prima Zoraide estava namorando um velho sírio, dono do mercado da esquina, e a vovó Dinha continuava chorando, como ela gostava de chorar; tudo com a cumplicidade, e chancela da mentora espiritual da família, que nem era da família na realidade.

No quadro um sorriso sorrateiro, espúrio, quase que malicioso, de alguém que todos queriam beatificar, e uma análise mais profunda justificaria o consenso, afinal ela proporcionou grandes alegrias ao patrono, muito patrono, de uma célula familiar, ainda dava excelentes palpites para os vícios de alguns, promessas de amor, para os sonhos de outras, e lágrimas sinceras para a vovó, que adorava chorar; e assim ficou definido: como o calendário pode embaçar qualquer mentira; como as incertezas podem levar ao perdão e como o tempo ê magnânimo.

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 16/06/2018
Reeditado em 16/06/2018
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