DR. MOURA

Bate saudades lembrar Alcobaça nos tempos em que o caminho para a Barra era repleto de cajueiros. No verão, fazia gosto ver o colorido e sentir o aroma dos cachos carregados. Grandes amarelos, vermelhos, pequenos, doces rachadinhos e de outros tipos.

Vivíamos os tempos em que a cidade – ainda pequena – não recebia tantos estranhos visitantes. A população conhecia – e muito bem - os que por aqui faziam seu recanto de veraneio. Esquecer portas e janelas destrancadas? Não se registrava a subtração de uma só agulha. Enfim, a era e a atmosfera de uma sociedade segura, essencialmente familiar.

Dr. Moura (nome fictício para personagem real) era um desses queridos veranistas, com casarão nas proximidades da Igreja. Só a chegada de sua família alterava a população local. Nove filhos. Ainda trazia cozinheira e babá.

Médico famoso em Teófilo Otoni/MG, não dispensava o sol de verão de Alcobaça. Descia no trem da Bahiminas até Caravelas. Para completar a viagem, contava com a jardineira de dona Edna, esposa do colega dr. Almiro. Sem ela, sobrava para Nininho ou Honoratinho a honra de transportar a ilustre clientela. Apesar de bem cuidados, eram veículos precários. Nem mais alternativas. A travessia do rio era feita em grandes canoas, remadas por “Sinoca”, Lindolfão e Pedro Preto, chamados ao serviço com fogos de artifício.

Em Alcobaça, dr. Moura gostava – e muito – de compartilhar com amigos cachacinhas puras ou traçados em botecos da praia e do porto. A cada ano trazia novidades para degustação com os confrades de copo. Também era por esses costados que reencontrava colegas de profissão – Dr. Pedro Barbosa, Dr. Darcy e muitos outros. Festejava efusivamente o abraço com amigos locais, admiradores e gente de sua vasta clientela, geralmente prenhe de gratidão, com sobra de razão.

Dr. Moura não era um médico a mais no universo. Clínico geral, não por falta de conhecimento nem experiência em várias especialidades. Cirurgião de mãos precisas. Ginecologista e obstetra preferido. Dominava, com desenvoltura, conhecimentos sobre doenças tropicais. Autodidata, dedicava-se diuturnamente à atualização profissional, mormente sobre as ocorrências médicas mais comuns na região.

Sobre a saúde dos alcobacenses trocava ideias com Benedito, “farmacêutico prático”, radicado há mais de vinte anos na cidade. Vindo das brenhas pernambucanas – desacompanhado -, tinha dr. Moura como amigo fiel, inclusive para confidenciar particularidades sigilosas. Foi dr. Moura quem lhe ensinara a aplicar injeção e lhe presenteara - anos mais tarde - um completo estojo de seringas de vidro e agulhas hipodérmicas alemãs.

De fina educação, atendia, com igual atenção e carinho pobres e ricos – ricaços, diga-se. Jamais cobrava qualquer centavo dos pobres necessitados. Tinha a medicina quase como um sacerdócio.

Difícil dizer como dr. Moura era mais respeitado e louvado. Médico, chefe de família, cidadão popular, companheiro e, para variar, respeitável biriteiro.

Foi essa sua última faceta que certamente o retirou de quase tudo e todos. Aos cinqüenta e seis anos, já diabético e hipertenso, foi diagnosticado com cirrose hepática incipiente.

Proibido de tocar em bebida alcoólica, tornou-se pessoa vigiada dia e noite. Sua esposa, dona Julia, não piscava no zelo e patrulhamento para cercear possíveis tentações alcoólicas do marido. Os amigos passaram a ser recebidos em casa, para evitar escapadas.

Quando em Alcobaça, por conta da atmosfera praiana, as tentações aumentavam e a vigilância redobrava. Depois da caminhada matinal, sentado à sombra de um largo guarda-sol, na praia, extasiava-se com o horizonte. Na fresca da brisa curtia leituras de Jorge Amado, Eça de Queiroz etc. Ouvia as rádios Nacional, Tupy e Inconfidência, pelo receptor de ondas curtas. Sob rigorosa dieta, distraía-se chupando cajus bem maduros, levados consigo numa pequena cesta. Eram frutos selecionados e colhidos fresquinhos, por ele mesmo, na companhia de dona Julia, dos exuberantes cajueiros da Barra.

Domingo de sol brilhante, após a missa das sete, presidida por Frei Elias, maré baixa, mar manso e liso como um espelho, lá estava dr. Moura no sombreiro com sua costumeira cestinha.

O primogênito Júnior – já também médico - clinicava em Governador Valadares. Não desgarrava do pai nas férias alcobacenses. Fazia-se acompanhado da esposa e de um par de filhos miúdos a curtir a extensa areia dourada.

Observava, a curta distância, o pai em alegre solidão, a saborear gostosamente cajus. De repente, dr. Moura levanta-se e dirige-se à água. Chama à atenção seu passo trôpego e cambaleante. Logo é amparado e conduzido à residência. Dá para sentir seu hálito alcoólico.

Mas, como? Nada de garrafa ou frasco a seu lado. Só a cestinha, com dois cajus restantes e o romance Quincas Berro d’Água. Júnior examinou e provou os cajus. Encharcados de cachaça.

A rígida vigilância não permitiria dr. Moura à artimanha de injetar pinga nos cajus. Quem o fez, foi a mando e às escondidas, inclusive com trato sobre a marca nos frutos encharcados.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 16/06/2018
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