DO ABRIGO AO UMBIGO

Logo depois das quatro da tarde, de terça a domingo, via-se Glaura no Abrigo de Amaralina, em Salvador/BA. Seu tabuleiro de baiana, revestido de linho branco, oferecia tudo que se pode esperar de uma autêntica baiana acarajezeira. Morena, charmosa e impecavelmente vestida de babados brancos e rendas. Emoldurava seu lindo rosto, turbante com delicadas pedrinhas. Colares multicoloridos de todos os santos adornavam seu pescoço e colo. Enfim, figura que já se fazia indispensável na paisagem soteropolitana.

Cada freguês era seu admirador. Muitos não resistiam a jogar uma cantadinha nem que fosse sob disfarçada timidez. Glaura recebia tudo isso como afagos. Respondia com sorriso acanhado e simpático.

Nos seus vinte e poucos anos experimentou um romance de verão com Wagner, rico industrial paulista. Engravidou-se, com prazer e paixão. Os empreendimentos de Wagner em Camaçari forçavam-no a assídua presença e curtição no território baiano. De repente, nunca mais apareceu, tampouco reconheceu ser pai de Wanda.

Filha de mãe solteira, meiga e linda, Vandinha era fisicamente uma imagem da mãe. Saiu do tabuleiro e revelou-se estudiosa. Concluiu curso superior em artes cênicas na Universidade Federal da Bahia. Talentosa, foi aprovada e nomeada para cargo de carreira na Secretaria de Cultura da Bahia.

As duas moravam sob o mesmo teto, em Brotas. Não guardavam segredo uma da outra, exceto por um pequeno baú que Glaura mantinha na gaveta da cômoda, trancado a “sete chaves”, jamais tocado, nunca comentado. Era um respeitado segredo da mãe.

Terríveis varizes nas pernas causaram a Glaura dificuldades na locomoção. A cada dia, era mais rara no Abrigo. Corria sério risco de perder sua vaga. Vandinha licenciou-se da Secretaria e assumiu a condição de “baiana” para garantir o “ponto” e dar continuidade ao trabalho e à tradição da mãe.

Não tardou a se engraçar com um jovem mancebo, diretor de uma grande indústria em Camaçari. O romance evoluiu rapidamente. Chegou à proposta de casamento com casa em Vilas do Atlântico, no litoral norte da capital. Foi quando Vandinha resolveu confidenciar à mãe esse namoro.

Glaura achou que era hora de inaugurar um diálogo reflexivo sobre sua experiência amorosa. Revelou à filha o que nunca dantes dissera sobre sua origem paterna. Sem omitir um só detalhe da sordidez de Wagner, falou sobre ferida e dor da decepção amorosa. Sentimento represado, nojo e vingança. Força e arte de superação. Conselhos de cautela e responsabilidade não faltaram. Por fim, indagou-lhe sobre o pretendente. “De onde vem, para onde quer ir” e coisas assim.

Vandinha provocou tosse, engasgos, pigarro, respiração forte e até lágrimas na mãe ao mostrar-lhe fotos sacadas com o namorado. Suco de maracujá doce pronto na geladeira ajudou a aliviar o inesperado mal estar.

Sentadas de mãos dadas, as duas se entreolhavam fixamente sob inexplicável silêncio. Glaura levantou-se e trouxe do quarto entre os braços o pequeno baú. Ritualmente, sentou-se novamente e o abriu cuidadosamente. Pediu que Wanda examinasse e traduzisse, para si, a impressão causada por seu conteúdo.

Entre pesadas jóias de ouro maciço e brilhantes, fotos já um pouco esmaecidas mostravam sua mãe acompanhada entre sorrisos e semblantes de incontida paixão e felicidade. As fotos explicaram as jóias e ambos justificaram grandeza, simplicidade e garra daquela senhora.

O que não encontrava espaço nem forma na cachola de Vandinha era o figurante das fotos. Retrato de seu namorado! Como? Versão real do filme “Túnel do Tempo”? Emudecida, fitou a mãe por minutos. Chorou em soluços. Reexaminou as fotos e ousou a obviedade:

- Meu pai?

- Sim.

- Meu namorado é meu irmão?

- Provavelmente.

Com relações absolutamente rompidas, Glaura só viera saber da existência desse segundo filho, dez anos mais tarde, quando um anônimo lhe enviara matéria jornalística de São Paulo – também guardada no baú - dando conta do falecimento de Wagner, em acidente aéreo. Da nota obituária constava como único herdeiro o filho Walter, curiosamente de igual idade de Wanda. E, ainda, que os empreendimentos seriam tocados por um tutor nomeado judicialmente, também empresário, até a maioridade do herdeiro.

O anônimo – advogado - aproveitava a oportunidade para estimular Glaura a pleitear judicialmente, em nome da filha, a integralidade da herança. Fundamentava-se na suspeita de forja cartorial no registro de Walter. Glaura apenas alimentou sua curiosidade sobre a origem do garoto.

Encabulou-se ao saber que ele nascera em Salvador no mesmo dia e hospital em que tivera Wanda. E mais: que o prontuário hospitalar de internação de Glaura, na ocasião do parto, fora perdido e, posteriormente retificado, para dele constar(?) o registro de nascimento de gêmeos fraternos.

Wanda e Walter encontraram-se, já com seus registros de identidade (RG’s) na mão. Conferiram: pai, mãe, hospital, data e hora de nascimento idênticos.

Ignoraram ganâncias e competição. Louvaram-se no amor e na fraternidade. Acertaram-se. Tornaram-se, assim, amigos e bem entendidos sócios, inclusive, vizinhos de residência no Condomínio Encontro das Águas. Solteiros e indisponíveis, nunca se os notavam com namorado ou namorada. Contudo eram sempre vistos juntos e animados em eventos sociais.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 19/06/2018
Código do texto: T6368597
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