MÚCIO

Múcio, filho da aristocracia candanga, extrovertido e de alegria contagiante, fazia amizades facilmente. Adolescente, estava sempre atualizado com sua aparência. Cabelos alinhados, roupa da moda e novidades sociais (fofocas) na ponta da língua. Não faltava a reuniões sociais em clubes e residências. Típico “arroz de festa”.

Ao falar, seus gestos e trejeitos misturavam feminilidade, graciosidade, humor e agradabilidade. Sempre bem enturmado, rodeado por adolescentes e admiradores de todos os gêneros.

Nas festinhas, quando solicitado, ia ao piano e executava músicas populares. Nos dias de jogos da seleção brasileira de futebol, tocava o hino nacional, com invejável maestria. Além disso, possuía habilidades teatrais inatas. Em show de mímica, arrancava sonoras gargalhadas ao representar cidadã gorda e vaidosa - na terceira idade - antes de se deitar e ao despertar, lidando com suas cafubiras nas dobras gordurosas e vexações no vaso sanitário e no espelho.

Iniciou seus estudos universitários na faculdade de arquitetura da Universidade de Brasília. Migrou e terminou como bacharel em comunicação social. A vivência acadêmica desconstruiu-lhe o perfil aristocrático. Impôs-lhe melhor conhecimento político e, consequentemente, exercícios reflexivos sobre a sociedade brasileira e suas maldades. Passou a exibir comportamento político mais à esquerda.

Ainda assim, fazia-se sempre presente onde pontificavam políticos e destaques da aristocracia brasiliense. Tornou-se colunista social e ganhou espaço num importante jornal local, de abrangência nacional. Coluna social bem lida e badalada, por reunir buchichos, “furos” e “bombas” sobre políticos e socialites. Tudo isso divulgado por um esquerdista, oriundo da aristocracia, sem vulgaridades!

Consagrou-se no ramo, para desgosto dos conservadores. Porém, não lhe faltaram adversários. Dentre eles, Angelita Bourbon e Nélio Brother, também colunistas, rebaixados em prestígio com a ascensão de Múcio. Consolavam-se chorando no ombro da banda “chique” da sociedade Lago Sul do DF. Essa gente aproveitava o jeito atípico de Múcio, para chamuscar-lhe com maledicências, difamações e impublicáveis comentários.

A bem da verdade, Múcio nunca fora visto de “alegria” com homem. Horrorizava-se quando chamado de “bicha”. Moraes, jornalista crítico severo dos homossexuais, qualificava-o de “boneca virgem”. Tofão, do Caderno Dois, definia-o como pessoa assexuada (sem preferência nem interesse), com comportamento efeminado. Em suma, nas mesas de bar, onde predominavam jornalistas, comentar o comportamento de Múcio parecia mais interessante que seu trabalho.

Foi nessas mesas que Múcio, não suportando suas pressões íntimas, revelara ser portador do vírus da AIDS (HIV). A maioria não se surpreendeu. Achavam-no sério candidato a tal.

Embora, naquela época, isso significasse condenação à morte, os interlocutores surpreendiam-se com seu comportamento conformista. Ora falava sério e triste, achando-se algemado no corredor da morte, ora fazia pilhéria sobre a doença, como se não fosse com ele.

Ajudava seu bom humor, a condição de simples portador do vírus, sem qualquer sintoma. Nada o impedindo de continuar a viver, o vírus só lhe representava ameaça futura e um crachá de tarja preta.

Falava da morte com certa naturalidade associada a sua divertida e marcante frescura. Costumava pedir opinião sobre o destino a ser dado a seu corpo. Enterrado para ser consumido por vermes e larvas? Nunquinha! Batia três vezes na madeira. Preferia ser cremado e ter suas cinzas jogadas no meio do Lago Paranoá. Acrescentava: o evento deveria ser discreto, com música em volume baixo, sob céu ensolarado. Contar apenas com a presença de familiares, amigos e sinceros admiradores. Fazia questão da ausência dos hipócritas que nunca lhe respeitaram e sempre trabalharam por seu insucesso.

Cinco anos se passaram até aparecerem os primeiros sintomas da AIDS em Múcio. Ninguém mais o visitava. Vendeu seus bens para custear o tratamento. Recusava a ajuda dos pais. Foi achado morto em seu decaído e mal cheiroso apartamento.

Seus pais providenciaram a cremação do corpo e, na lua cheia imediata, a solenidade de lançar suas cinzas ao Lago.

No barco, os amigos reuniram-se na proa. Cabisbaixos, curtiam saudade e rememoravam detalhes de simpatia, lealdade e dos benfeitos do saudoso amigo. Os hipócritas, em maioria na popa, davam o tom de alegre convescote ao evento. Falavam da marca e da temperatura do champanhe. Discutiam lucros, vantagens comerciais, luxuosidades e amenidades entre sorrisos. Tintilando taças e animando essa turma lá estavam Angelita Bourbon e Nélio Brother. Tudo que o falecido não desejava em seu funeral.

No ato de atirar as cinzas na água, a bombordo da parte central, ocorreu uma forte rajada de vento de proa. A embarcação quase adernou. O conteúdo escapado do pequeno baú já aberto soprou em cheio sobre o time dos alegres hipócritas. Foi cinza no champanhe, nos salgadinhos, nas roupas, nos cabelos armados e até adentrando por baixo das saias das madames. Tiveram que engolir Múcio compulsoriamente, voltando para casa purpurinados e aromatizados com as cinzas do defunto que, para eles, não cheirava.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 04/07/2018
Código do texto: T6381672
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.