MOTORISTA, NÃO! CINESÍFORO

No início, Brasília reunia migrantes de todos os cantos do Brasil. Proliferavam tipos, com diferentes sotaques e interesses.

Dignas de registros eram as estratégias utilizadas, por cada cidadão para fazer-se inserido, destacado e famoso na sociedade que emergia na nova capital. A maioria apoiada na presunção de Brasília ser uma “terra de cego”.

Cleudo é um bom exemplo. Depois de penar como peão de obra, guarda noturno, camelô e tratorista, chegou a motorista de um ministério. Motorista, não! Fazia questão de intitular-se “cinesíforo”. Motoristas eram os demais colegas de volante. No seu cartão de visitas, com as armas da república precedendo o nome do ministério onde trabalhava, constava na área central: Cleudo Odalino de Souza e, logo abaixo, em tipo itálico: cinesíforo.

Não relaxava na aparência pessoal. Vestia-se bem, impecável dentro do uniforme azul oficial. Sempre convencionalmente penteado, barbeado, limpo e cheirando a pós-banho. Entre os colegas, sobressaía-se como o mais falante, o sabichão. Na verdade, atualizava-se com frequência invejável. Adiantava-se na divulgação de novidades, antes da mídia. Externava opinião sobre tudo: mecânica automobilística, futebol, religião, política, coisas do cotidiano etc. No Ministério, conhecia todos os diretores, chefes e subchefes. Sabia, inclusive, o grau de poder, a força política de cada um. Jactava-se gozar de intimidade junto a todos eles e de transitar facilmente entre outras autoridades. Nunca revelava suas fontes de informação.

Gabava-se – com grande chance de estar certo – muito querido no ambiente de trabalho. De fato, era o motorista comumente selecionado para servir ao Ministro ou ao Chefe de Gabinete do Ministro.

Suas conversas – pretensamente cultas - eram recheadas de expressões e palavras colhidas aqui e alhures. Na maioria das vezes ele nem sabia o que falava. Mas, sem acanhamento, soltava o verbo, mesmo que isso o fizesse ridiculamente engraçado.

Foi seu vocabulário pretensamente atualizado que o marcou e acabou sendo eternizado como anedotas ao longo do tempo.

É dele, por exemplo, a expressão “estou num diadema retroz”, querendo dizer “estou num dilema atroz”. Ou “dr. Medeiros é um ‘balaústre’ (querendo dizer baluarte) na defesa de nossos interesses”. Ou ainda: “estou muito ‘gorgulhoso’ de meu filho passar de ano”.

Como de costume, professoralmente, levou ao conhecimento de seus colegas, a novidade mecânica já presente nos motores importados: a correia dentada. Para ele, correia “dentária”.

Vivíamos no período da ditadura militar. Certa vez contou-me não gostar de entrar nos ministérios militares porque na entrada tinha um “conte gente”.

- Como assim Cleudo? Por quê? Vejo por lá apenas alguns soldados, mas não um contingente.

- Note bem! Na porta de entrada tem sempre um soldado que bate o pé quando alguém entra. Perto dele fica outro anotando e contando os tipos que entram. Cada um é identificado de acordo com a batida do pé. Esse é o “conte gente”. Não tendo muito que fazer, ficam contando gente que entra e que sai. Sabe como é, né? Os milicos são cismados com os civis!

Indagado certa vez pelo Departamento de Pessoal, para efeito de atualização de cadastro, sobre seus filhos, respondeu:

- Tenho duas meninas, dois meninos e um adulterino.

Com o termo “adulterino”, queria dizer, um rapaz chegando à idade adulta. Dona Nelma, Chefe do Setor, pacientemente, explicou-lhe que “adulterino” é o filho fora do casamento, ou “filho de capoeira”, no linguajar chulo.

Também, naquela ocasião, a cúpula militar dirigente do país estudava o nome do próximo presidente. A mídia, como sempre, discutia o assunto paralelamente, com o devido cuidado para não afetar o humor palaciano. Nomes eram citados, não como “chutes”, mas, pretensiosamente, como “furo jornalístico”. Cleudo interessava-se e acompanhava o assunto pelos noticiários.

Um dia, terminado o expediente, conduzindo o paciente Chefe de Gabinete à residência, criou coragem para desentupir sua curiosidade. Tendo ouvido notícias políticas, resolveu “jogar verde para colher maduro”.

- Doutor, por que chamam o próximo Presidente de “Garrafa Azul”? Ele é chegado num vinho branco alemão?

O Chefe entendeu que ele se referia ao futuro Presidente, General Garrastazu Médice. Com risos mudos, esquivou-se da resposta, fazendo outra pergunta dentro do provável conhecimento do condutor.

- Cleudo, por que as lanternas sinaleiras de meu carro estão piscando rapidinho, como árvore de natal?

Prestativo e pronto a mostrar conhecimento, respondeu:

- Doutor, é possível que uma das lâmpadas esteja queimada. Essas lanternas são ligadas “em Ceres” (queria dizer “em série”). Quando uma queima as outras piscam rapidinho. Amanhã vou verificar e, se for isso mesmo, providenciar a compra de lâmpada para substituição.

Cleudo falava a colegas de planos quando se aposentasse. Revelou seu sonho de construir e morar na Bahia, com o pé na praia. Revoltou-se ao ser informado que os moradores à beira mar, tinham que pagar o “laudêmio” (tributo federal devido para quem ocupa área até 33 metros distante do mar). Daí, largou mais essa:

- Espero que os milicos enjaulem esse tal de “laudêmio” - corrupto - e acabe com sua folga de cobrar aluguel pelo que não é seu.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 04/07/2018
Código do texto: T6381674
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