A ÉPOCA DOS BOYS DE SÃO VICENTE

A ÉPOCA DOS BOYS DE SÃO VICENTE

Em São Vicente, lá pela década de 60, a onda era ser “boy”. Ser boy era ser avançado, ousado, bom de porrada, bom de copo e, principalmente, ser um conquistador de sucesso com a “mina”. E precisava ter muitos outros predicados para realmente ser BOY! Roupas de última moda, dançar bem, ter um grande repertório de gracinhas para falar nas orelhas da mina e, supremo atributo, ter um carro. Ou seja, boy verdadeiro tinha muito pouco. Mas, ser boy era, antes de tudo, um estado de espírito. Podia ser pobre, remediado, classe média, rico, etc., o negócio era posar de boy, fazer cara de boy, falar que nem boy, desafiar as pessoas como boy. Quanto mais superficial melhor, quanto mais diferente melhor ainda.

Eu olhava aqueles adolescentes querendo ser boy e ficava pensando por que eu não tinha a mínima aptidão ou vontade de ser boy. Minha turma curtia bossa nova, uísque, cuba libre, papos madrugadas adentro. Nossas preocupações eram bem diferentes de querer ser boy. Éramos observadores dos boys. Alguns amigos de infância, tanto da Pracinha como do Tumiarú se tornaram boys. Que eu me lembre, o Luiz Guapo, meu querido amigo Lica tornou-se boy e andava com um boy de verdade, o Arturzinho. Esse sim tinha carrões, família rica, ar de aristocrata, era gente muito boa. Outros que eu lembro: Paulo Cesar Batatinha, Monstrinho, Miguel Bola, Cuca, Jerônimo, gêmeos Mapa do Inferno (não faço a mínima ideia dos nomes), Verdi, Edgar Mil Milhas e outros, muitos outros. Edgar Mil Milhas era o apelido do Edgar de Mello Filho, que viria a ser administrador de Interlagos por muitos anos.

Foi uma época divertida, nada monótona. Apareciam novidades a toda hora: fulano bateu o carro do pai, capotou o carro do amigo, começou a namorar fulana, brigou e bateu, brigou e apanhou. Nunca escutei dos boys que alguém havia se formado, ou iniciado a trabalhar, ou casado. Esses comentários não pegavam bem para um boy. Mas, os boys eram, de modo geral, amigos que haviam adotado esse comportamento, não eram maus, bem diferentes dos bad boys de hoje. Poucos eram violentos e ou consumiam drogas. Era um porre aqui, uma briga ali. Muitas festas, bailes, rachas de carros (a maioria com carro dos pais). Uma parte engraçada desse estado de espírito era os caras que queriam serem boys a qualquer custo, mas não entendiam a essência da coisa. Idolatravam os amigos boys, imitavam o comportamento deles mesmo se expondo ao ridículo. E os boys não perdoavam: faziam gozações impiedosas, inventavam brincadeiras de mau gosto e davam muitas broncas nos seus seguidores.

Lembro-me de algumas malvadezas. Um desses idolatrados combinou com dois desses falsos boys que iriam viajar às cinco horas da manhã e que iria apanhá-los em frente ao Restaurante Gáudio, principal reduto dos boys vicentinos. O detalhe era que todos iriam de sunga (na época calção de banho), descalços, sem camisa, em pleno inverno. De madrugada estavam os dois esperando ansiosos pelo boy, que nunca passou. Um frio intenso e os bobões de sunga. Ficaram lá até umas oito horas. Pior que acharam legal a brincadeira, coisa de boy. No pátio lateral do Gáudio ficava uma galera, conversando até altas horas da noite. Rolavam muitas gozações, combinavam-se novos programas. Certa noite um dos boys disse que havia aprendido uma nova brincadeira com o pessoal da rua Augusta, capital mundial dos boys, o que despertou interesse geral. Começamos (nessa ocasião eu estava lá) imediatamente a montar o esquema. Formou-se uma grande roda, e o líder dizia uma parte do rosto e passava o dedo no local citado no participante do seu lado. “Sobrancelha!” disse o líder e passou o dedo na sobrancelha do cara ao lado, que por sua vez passou adiante o gesto. Completada a roda, o líder falava, por exemplo, “Bigode!” e passava o dedo no buço do parceiro e a roda girava novamente. Aparentemente idiota esse jogo, mas um detalhe gerou ataques de riso em toda turma. De propósito, um dos boys se posicionara ao lado de um desses falsos não boys. No bolso, uma rolha queimada. A cada volta o camarada passava a o dedo na rolha e, com o dedo preto de carvão, marcava a cara da vítima. Na terceira ou quarta volta o infeliz estava com o rosto cheio de marcas pretas e ria para acompanhar os demais, sem saber que estavam rindo dele. Quase acabou em briga. Lavada a cara, a conversa continuou.

Participei de alguns rachas no Canal 6, em Santos, como passageiro do saudoso amigo Gregório Stipanich, que pilotava uma Rural Villas. Lá pela meia noite, uma imensa quantidade de carros estacionava e começava um barulho intenso. O ronco dos motores de escapamento aberto, os boys combinavam o percurso, geralmente até o encontro da Av. Conselheiro Nébias com a praia e retornando até o canal seis, e partiam acelerando violentamente. Até chegar a polícia e acabar com a brincadeira irresponsável.

Confesso que fui um pouco boy.

Santos, 18 de Julho de 2018.

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 18/07/2018
Reeditado em 22/09/2020
Código do texto: T6393379
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